segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Oliver Twist, Capítulos 1 ao 5


Capitulo I
Do lugar em que Oliver Twist nasceu e das circunstancias que
ocorreram nessa ocasiao.
Dentre os varios monumentos publicos que enobrecem uma cidade de
Inglaterra, cujo nome tenho a prudencia de nao dizer, e a qual nao quero
dar um nome imaginario, um existe comum a maior parte das cidades
grandes ou pequenas: e o asilo da mendicidade.
La em certo dia, cuja data nao e necessario indicar, tanto mais que
nenhuma importancia tem, nasceu o pequeno mortal que da nome a
este livro.
Muito tempo depois de ter o cirurgiao dos pobres da paroquia introduzido
o pequeno Oliver neste vale de lagrimas, ainda se duvidava se a pobre
crianca viveria ou nao; se sucumbisse, e mais que provavel que estas
memorias nunca aparecessem, ou entao ocupariam poucas paginas, e deste
modo teriam o inapreciavel merito de ser o modelo de biografia mais
curioso e exato que nenhum pais em nenhuma epoca jamais produziu.
Ainda que eu nao esteja disposto a sustentar que seja extraordinario favor
da fortuna nascer a gente num asilo de mendigos, posso afirmar que,
nas circunstancias atuais, era o melhor que podia acontecer a Oliver Twist.
A razao e esta. Houve imensa dificuldade em fazer com que Oliver
desempenhasse as funcoes respiratorias, exercicio fatigante, mas necessario
a nossa existencia. Durante algum tempo ficou o pecurrucho deitado
no colchao de la grosseira, fazendo esforcos para respirar, oscilando
entre a vida e a morte e inclinando-se mais para esta. Se durante esse
tempo Oliver estivesse rodeado de avos solicitados, tias assustadas, amas
experientes e medicos profundamente sabios, morreria infalivelmente.
Mas como nao havia ninguem, exceto uma pobre velha que havia bebido
um trago demais e um medico pago por ano para esse trabalho, Oliver e
a natureza ficaram sozinhos em face um do outro.
OLIVER TWIST
ÇcÇe
O resultado foi que, apos alguns esforcos, Oliver respirou, espirrou e
deu noticia aos habitantes do asilo da nova carga que ia pesar a paroquia,
soltando um grito tao agudo quanto se podia esperar de um varao
que so desde tres minutos e meio possuia este utilissimo presente que
se chama voz.
No momento em que Oliver dava essa primeira prova da forca e da liberdade
de seus pulmoes, agitou-se a pequena coberta remendada da cama
de ferro. Levantou-se com dificuldade o rosto palido de uma moca, e uma
voz fraca articulou estas palavras:
¡X Quero ver meu filho antes de morrer!
O medico estava assentado diante da lareira, aquecendo-se e esfregando
as maos. Ouvindo a voz da moca levantou-se e, aproximando-se da
cama, disse com mais docura do que se podia esperar do seu oficio:
¡X Oh! Nao fale de morrer!
¡X Deus proteja a pobre mulher! ¡X disse a enfermeira, metendo na
algibeira uma garrafa cujo conteudo provava nesse momento com evidente
satisfacao; quando ela tiver vivido tanto como eu e tiver tido treze
filhos e perdido onze, visto que so me restam dois aqui no asilo, entao ha
de pensar de outra maneira. ¡X Ora, vamos, pense na felicidade de ser
mae deste pequeno.
E provavel que essa perspectiva consoladora da ventura maternal nao
produzisse grande efeito. A enferma sacudiu tristemente a cabeca e estendeu
as maos para o filho.
O medico passou-lhe a crianca aos bracos; ela aplicou com ternura, na
testa do pequeno, os labios palidos e frios; depois passou as maos pelo
proprio rosto, caiu na cama e morreu.
Esfregaram-lhe o peito, as maos, as fontes; mas o sangue estava gelado
para sempre; falavam-lhe de esperanca e de amparo; mas ela estava tanto
tempo privada disso que achou melhor expirar.
¡X Esta acabado, Sra. Haingummy ¡X disse o medico.
¡X Ah! Pobre moca, e verdade ¡X disse a enfermeira apanhando a rolha
da garrafa verde, que havia caido na cama, enquanto ela se abaixara
para segurar o pequeno.
¡X E inutil mandar-me chamar se a crianca berrar ¡X disse o medico
com resolucao. ¡X E provavel que nao fique sossegado. Nesse caso de-lhe
um pouco de mingau.
O medico pos o chapeu na cabeca e, dirigindo-se para a porta, parou
junto da cama e disse:
CHARLES DICKENS
ÇcÇf
¡X Era bonita! De onde veio ela?
¡X Trouxeram-na ontem a noite ¡X respondeu a velha ¡X por ordem
do inspetor; foi achada na rua; fizera um longo trajeto, porque os sapatos
estavam em frangalhos; mas de onde vinha e para onde ia? Ninguem
sabe dizer.
O medico inclinou-se para o corpo e, levantando a mao esquerda da
defunta, disse abanando a cabeca:
¡X Sempre a mesma historia; nao tem anel de alianca... Nao era casada...
Boa noite!
O doutor foi jantar, e a enfermeira, depois de levar a boca a garrafa,
assentou-se numa cadeira junto a lareira e entrou a vestir o pequeno.
Que exemplo da influencia da roupa ofereceu entao o pequeno Oliver
Twist! Envolvido na coberta que ate entao fora sua unica roupa, podia ser
filho de um fidalgo ou mendigo; era impossivel ao estranho mais presumido
dizer qual era a sua classe na sociedade; mas quando o meteram
num vestidinho velho de morim, amarelecido nesse uso, achou logo seu
lugar; filho da paroquia, orfao do asilo de mendigos, vitima da fome,
destinado aos maus-tratos, ao desprezo de todos, a piedade de ninguem.
Oliver berrava com quantas forcas tinha. Se ele soubesse que era orfao,
abandonado a terna compaixao dos bedeis e dos inspetores, talvez berrasse
mais alto.

Capitulo II
Como Oliver Twist cresceu e foi educado.
Durante os oito ou dez meses que se seguiram, Oliver Twist foi vitima
de um sistema continuo de trapacas e decepcoes.
Foi criado com mamadeira.
As autoridades da paroquia perguntaram com dignidade as autoridades
do asilo se nao havia alguma mulher, residente no estabelecimento,
que pudesse dar a Oliver Twist a consolacao e o alimento de que ele
carecia. As autoridades do asilo responderam humildemente que nao
havia; a vista do que, as autoridades da paroquia tiveram a humanidade
e a magnanimidade de ordenar que Oliver fosse mandado para uma
casa dependente do asilo, situada a tres milhas de distancia, onde uns
vinte ou trinta infratores da lei dos pobres passavam o dia a rolar pelo
chao sem medo de comer muito nem andar agasalhados demais. Tratava
deles uma velha que recebia os delinquentes a razao de tres tostoes por
semana e por cabeca.
Tres tostoes fazem uma boa soma para sustentar um pequeno; pode
comprar-se muita coisa com tres tostoes; quanto baste para abarrotar o
estomago de uma crianca e alterar-lhe a saude.
A velha era prudente; sabia o que convinha aos pequenos e o que lhe
convinha a ela; em consequencia disto, gastava consigo a maior parte do
auxilio hebdomadario e reduziu a pequena geracao da paroquia a um
regime mais escasso do que aquele que se dava na casa onde Oliver nasceu.
A boa senhora esticava cada vez mais os limites conhecidos da economia
e mostrava ter consumada filosofia na pratica da vida.
Todos conhecem a historia daquele outro filosofo experimental, que
imaginara uma bela teoria para fazer com que um cavalo vivesse sem
comer e que a aplicou tao bem que chegou a dar ao cavalo a racao de fio
de palha. Indubitavelmente, ficaria aquele animal agil e ligeiro, se nao
OLIVER TWIST
ÇcÇi
tivesse morrido vinte e quatro horas antes de receber pela primeira vez
uma forte racao de ar puro.
No que respeita a velha, a cujo cuidado Oliver foi confiado, esse resultado
era quase sempre a consequencia natural do seu sistema. Justamente
na ocasiao em que uma crianca conseguia existir com uma escassissima
porcao de alimento, acontecia, oito vezes em dez casos, que a infame crianca
tinha a maldade de cair doente de frio e de fome ou deixar-se cair no
fogo por descuido; entao partia a desgracada criaturinha para o outro
mundo, onde ia encontrar os pais que nao conhecera neste.
Fazia-se as vezes uma devassa do caso mais interessante que de costume,
a respeito de uma crianca abafada debaixo de um colchao ou achada
numa bacia de agua a ferver em dia de varela, posto que este ultimo
acidente fosse raro, porque na casa da velha quase nunca se lavava roupa.
Nessas ocasioes o juri fazia algumas perguntas de atrapalhar, ou
entao os habitantes da paroquia tinham a audacia de assinar uma reclamacao;
mas estas impertinencias eram logo reprimidas pelo relatorio
do medico ou pelo testemunho do bedel. O medico declarava que
abrira o corpo e nada achara dentro, o que era muito provavel; e o bedel
jurava sempre no sentido das autoridades da paroquia ¡X o que revelava
admiravel dedicacao.
Demais, a comissao administrativa fazia excursoes periodicas a esses
estabelecimentos secundarios, tendo o cuidado de mandar o bedel adiante
para anunciar a visita; as criancas estavam lavadas e assediadas quando
esses senhores chegavam.
Tal sistema de educacao nao daria as criancas muita forca nem grossas
banhas. No dia em que completou nove anos, Oliver Twist era um pirralho,
amarelo como um defunto e singularmente magro.
Oliver devia a natureza ou a seus pais um espirito vivo e reto, que nao
teve dificuldade em se desenvolver, apesar das privacoes do estabelecimento,
e foi talvez a isso que ele deveu ter chegado ao seu nono aniversario
natalicio.
Fosse como fosse, completava ele nove anos e estava nesse dia no deposito
de carvao com dois companheiros, que receberam com ele uma dose
de bofetoes e foram metidos no dito deposito, por terem tido a audacia de
dizer que estavam com fome. De repente a Sra. Mann, a excelente diretora
da casa, foi surpreendida com a aparicao imprevista do bedel, o Sr.
Bumble, que procurava abrir a porta do jardim.
CHARLES DICKENS
ÇcÇj
¡X Santo Deus! E o Sr. Bumble ¡X disse a Sra. Mann, pondo a cabeca
na janela e simulando uma grande alegria. ¡X Suzana, mande ca para
cima Oliver e os outros dois peraltas e lave-os depressa. Que prazer, que
prazer tenho eu em ve-lo, Sr. Bumble.
O Sr. Bumble era gordo e irritadico; em vez de responder polidamente
a este cumprimento afetuoso, entrou a sacudir com toda a forca a porta,
dando-lhe depois um pontape, mas um verdadeiro pontape de bedel.
¡X Sera possivel? ¡X disse a Sra. Mann correndo a abrir a porta, enquanto
se punham as criancas em liberdade. Esquecia-me que a porta
estava fechada! Aqueles queridos pequenos fazem-me esquecer tudo. ¡X
Queira entrar, Sr. Bumble, queira entrar.
Posto que este convite fosse feito com uma cortesia que abrandaria o
coracao mais duro, nao comoveu o Sr. Bumble.
¡X Acha decoroso, Sra. Mann ¡X perguntou ele agitando a bengala ¡X,
acha bonito fazer esperar os funcionarios da paroquia a porta de seu jardim,
quando eles vem desempenhar as suas funcoes paroquiais e visitar
as criancas da paroquia? Esquece acaso que a senhora e delegada da paroquia
e estipendida por ela?
¡X Oh! Nao, Sr. Bumble ¡X respondeu a Sra. Mann humildemente. ¡X
Mas eu ia dizer a um ou dois destes queridinhos meninos que gostam
tanto do senhor a honra que iam ter com a sua visita, Sr. Bumble.
Sr. Bumble tinha uma alta ideia do seu talento oratorio e de sua importancia;
tinha-os ostentado e defendido; acalmou-se.
¡X Esta bom, esta bom ¡X respondeu ele. ¡X E possivel; entremos, Sra.
Mann; venho tratar de negocios.
A Sra. Mann introduziu o bedel em uma pequena sala, cujo chao era
de tijolos, apresentou-lhe uma cadeira e apressou-se em tirar-lhe das
maos a bengala e o chapeu de tres bicos, colocando-os sobre a mesa. O
Sr. Bumble enxugou a testa coberta de suor, lancou um olhar
complacente ao chapeu de tres bicos e sorriu. E verdade, sorriu.
¡X Nao se zangue com o que lhe vou dizer ¡X observou a Sra. Mann
com sedutora meiguice. ¡X O senhor vem cansado; se nao fosse isso nao
lhe falaria em semelhante coisa; quer tomar uma gota de alguma coisa?
¡X Nada, absolutamente nada ¡X disse o Sr. Bumble recusando com
dignidade, mas com brandura.
¡X Nao me ha de recusar ¡X disse a Sra. Mann, que observara o tom do
bedel ¡X, nao me ha de recusar uma pingazinha, com agua e acucar.
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ÇdÇa
O Sr. Bumble tossiu.
¡X Um quase nada ¡X disse a Sra. Mann.
¡X Que me quer a senhora oferecer? ¡X perguntou o Sr. Bumble.
¡X Naturalmente hei de ter em casa alguma coisa, para por no caldo
dos meninos quando eles estao doentes ¡X respondeu a Sra. Mann abrindo
um bufe, donde tirou uma garrafa e um copo. ¡X E genebra.
¡X A senhora da caldo aos meninos? ¡X perguntou o Sr. Bumble acompanhando
com o olhar a operacao da mistura.
¡X Decerto que lhes dou caldo ¡X disse ela ¡X, posto que custa caro;
mas eu nao posso ver sofrer; custa-me muito ve-los doentes.
¡X Muito bem ¡X disse o Sr. Bumble ¡X, muito bem; a senhora e uma
boa alma. (Ela pos o copo na mesa.) Aproveitarei a primeira ocasiao para
dizer isso ao conselho paroquial. (Aqui o Sr. Bumble puxou o copo para
si.) Essas criancas tem na senhora uma verdadeira mae. (Agitou a aguardente
e a agua.) Bebo a sua saude, Sra. Mann. (Bebeu metade.) Agora
falemos de negocios ¡X continuou o bedel tirando da algibeira uma carteira
de couro. ¡X A crianca que foi mandada com o nome de Oliver Twist
faz hoje nove anos...
¡X Queridinho! ¡X disse a Sra. Mann esfregando o olho esquerdo com
a ponta do avental.
¡X E apesar da oferta de uma recompensa de dez libras esterlinas, sucessivamente
elevada ate doze libras; apesar dos esforcos incriveis e se
ouso assim falar, sobrenaturais, da parte da paroquia ¡X disse o Sr. Bumble
¡X, ate hoje foi impossivel descobrir quem e o pai, nem o nome e a condicao
da mae.
A Sra. Mann levantou as maos em sinal de espanto; depois disse:
¡X Mas como e que ele tem um nome de familia?
O bedel empertigou-se com certo orgulho.
¡X Fui eu que lho inventei ¡X disse ele.
¡X O senhor?
¡X Eu mesmo; nos damos os nomes aos enjeitados por ordem alfabetica: o
ultimo era da letra S; chamei-lhe Swubble; este era da letra T; chamei-lhe
Twist; o seguinte sera Unwin, o outro Volkent; tenho nomes prontos de
uma ponta a outra do alfabeto; e em chegando ao Z, volto ao A.
¡X O senhor e um grande letrado, Sr. Bumble ¡X disse a Sra. Mann.
¡X E possivel, e possivel ¡X disse o bedel, evidentemente satisfeito com
o cumprimento.
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ÇdÇb
Bebeu o resto da genebra e continuou:
¡X Como Oliver ja nao esta em idade de ca ficar, o conselho paroquial
resolveu manda-lo buscar para o asilo, e eu vim cumprir essa missao.
Mande-o vir.
¡X Vou manda-lo buscar ¡X disse a Sra. Mann saindo da sala.
Oliver, que durante esse tempo foi lavado o melhor que pode ser, apareceu
dai a pouco conduzido pela sua benevola protetora.
¡X Oliver, cumprimenta este senhor ¡X disse a Sra. Mann.
Oliver cumprimentou a um tempo o bedel, que esta assentado, e o chapeu
de tres bicos que estava na mesa.
¡X Quer vir comigo, Oliver? ¡X perguntou o Sr. Bumble com majestade.
Oliver estava a ponto de dizer que nao desejava outra coisa, quando
deu com os olhos na Sra. Mann, que ficara por tras da cadeira do bedel e
lhe mostrara a mao em atitude de soco; compreendeu logo o que aquilo
queria dizer, porque o pulso da boa velha tantas vezes lhe fora aplicado as
costas que era impossivel deixar de o ter em lembranca.
¡X A Sra. Mann vai comigo? ¡X perguntou o pobre Oliver.
¡X Nao, e impossivel ¡X respondeu o Sr. Bumble ¡X, mas ha de ir ve-lo
de vez em quando.
Nao era isto consolador para a crianca; mas, apesar da sua tenra idade,
tinha ele ja bastante sagacidade, para fingir um grande pesar de se ir embora;
nao lhe era dificil derramar lagrimas; fome e pancada fresca sao muito
uteis quando a gente precisa chorar; Oliver chorou naturalmente.
A Sra. Mann deu-lhe mil beijos e, o que valia mais, uma fatia de pao
com manteiga, a fim de que ele nao tivesse ar de esfaimado quando chegasse
ao asilo. Com um pedaco de pao na mao e um bone de pano escuro, foi
Oliver levado pelo Sr. Bumble para fora daquela humilde casa, onde um
olhar ou uma palavra de afeicao jamais lhe suavizou os seus tristes anos de
infancia. E contudo rebentaram-lhe os solucos quando a porta se fechou;
por mais miseraveis que fossem os seus companheiros de infortunio, eram
esses os unicos amigos que ele conhecera, e pela primeira vez sentiu ele em
seu coracao de crianca a solidao em que se achava neste vasto universo.
O Sr. Bumble caminhava apressadamente, e o pequeno Oliver, apertando
nas maos a roupa do bedel, caminhava ao lado dele e perguntava a
cada instante se estavam perto da casa. O Sr. Bumble respondia por modo
breve e duro: ja nao sentia a influencia benefica que exerce a genebra em
certos coracoes.
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ÇdÇc
Chegaram.
Mas nao havia um quarto de hora que Oliver transpusera a soleira do
asilo da mendicidade e fizera desaparecer o segundo pedaco de pao quando
o Sr. Bumble, que o confiara aos cuidados de uma velha, veio dizer-lhe
que era dia de conselho e que o conselho o mandara chamar.
Oliver teve medo de ver tantos homens e nao deu resposta. Ficou
muito espantado com a noticia, nao sabendo se devia rir ou chorar; mas
nao teve tempo de longas reflexoes, porque o Sr. Bumble teve a ideia de
lhe aplicar uma bengalada na cabeca para que ficasse atento, outra nas
costas para que ficasse esperto, ordenou-lhe que o acompanhasse e o levou
para uma grande sala caiada, onde oito ou dez sujeitos gordos estavam a
roda de uma mesa, a cuja cabeceira ficava um sujeito de bela corpulencia,
carao redondo e vermelho, assentado em cadeira mais alta que as outras.
¡X Cumprimente o conselho ¡X disse o Sr. Bumble.
Oliver enxugou duas outras lagrimas que lhe rolavam nos olhos e cumprimentou
a mesa do conselho.
¡X Como se chama voce? ¡X perguntou o presidente.
Oliver teve medo de ver tantos homens e nao deu resposta. O bedel
aplicou-lhe nova bengalada que o fez chorar; Oliver respondeu baixinho
e com voz tremula; vendo isso, um sujeito de colete branco disse que ele
era idiota, meio excelente de tranquilizar e animar o pequeno.
¡X Ouca ¡X disse o presidente ¡X, voce sabe que e orfao?
¡X Que e ser orfao? ¡X perguntou o pobre Oliver.
¡X Este pequeno e idiota ¡X disse peremptoriamente o sujeito do colete
branco.
¡X Silencio! ¡X disse o presidente. ¡X Voce sabe que nao tem pai nem
mae e que e educado a custa da paroquia?
¡X Sei, sim, senhor ¡X respondeu Oliver chorando amargamente.
¡X Por que chora voce? ¡X perguntou o sujeito do colete branco.
Era realmente extraordinario; por que razao choraria Oliver?
¡X Creio que voce nao deixa de rezar todas as noites ¡X disse outro sujeito
¡X, e rezar como bom cristao, por aqueles que lhe dao de comer e de vestir...
¡X Sim, senhor ¡X balbuciou a crianca.
Tinha razao o sujeito que acabava de falar. Efetivamente era preciso
que Oliver fosse bom cristao, e ate um cristao modelo, para rezar por
aqueles que lhe davam de comer e de vestir; mas a verdade e que nao
rezava, porque lho nao haviam ensinado.
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ÇdÇd
¡X Esta bem ¡X disse o presidente de cara rubicunda. ¡X Voce esta
aqui para ser educado e aprender um oficio util.
¡X Amanha as seis horas da manha comecara a desfiar estopa ¡X disse
o sujeito do colete branco.
Mandar que Oliver desfiasse estopa era combinar de um modo simples
os dois beneficios que lhe prometiam; ele os reconheceu ambos
com uma profunda cortesia por instigacao do bedel, depois foi levado
para uma grande sala do asilo onde, em cama dura, adormeceu solucando;
prova evidente da brandura das leis do nosso venturoso pais que nao
impedem o sono aos pobres.
Pobre Oliver! Adormeceu na feliz ignorancia do que se passava em
roda dele, nem pensava que nesse mesmo dia o conselho adotara uma
resolucao que devia exercer em seus destinos uma influencia irresistivel.
Mas a decisao estava assentada.
Vejamos qual ela era.
Os membros do conselho da administracao eram homens profundamente
filosofos. Examinaram o asilo da mendicidade e descobriram repentinamente
aquilo que os espiritos vulgares nunca chegaram a descobrir; isto e,
que os pobres nadavam em prazer naquele estabelecimento. As classes pobres,
no pensar daqueles senhores, tinham ali uma casa de recreio, uma
taverna em que nao se pagava nada, almoco, jantar, cha e ceia ¡X em suma
um verdadeiro paraiso de tijolos onde se gozava de tudo sem trabalhar.
¡X Ole ¡X disse o conselho consigo ¡X, vamos por estas coisas em seus
lugares; vamos acabar com isto.
Imediatamente estabeleceram como principio que os pobres pudessem
escolher (nao se forcava ninguem) uma destas coisas: ou morrer de
fome lentamente se ficassem no asilo, ou morrer de repente se saissem
para a rua. Para este fim contratou o conselho com a administracao das
aguas uma quantidade ilimitada delas e com um mercador de trigo a
remessa de um pouco de farinha de aveia em periodos determinados;
concederam tres pequenas racoes de mingau por dia, uma cebola duas
vezes por semana e a metade de um pao nos domingos.
A respeito das mulheres aprovaram outras resolucoes sabias e humanas,
que e inutil mencionar; por simples bondade d¡¦alma, resolveram separar
por uma especie de divorcio os pobres casados, o que lhes poupava
a despesa enorme de um processo na camara eclesiastica; e em vez de
obrigar o marido a sustentar a familia com o seu trabalho, tiravam-lhe a
OLIVER TWIST
ÇdÇe
familia e o punham outra vez celibatario. Nao se pode dizer bem quantas
pessoas em todas as classes da sociedade desejariam aproveitar este beneficio;
mas os administradores eram homens previdentes e obviaram essa
dificuldade; para gozar das vantagens do divorcio era preciso morar no
asilo e viver de mingau; isto intimidava os outros.
Seis meses depois da chegada de Oliver Twist, o novo sistema estava
em pleno vigor. A principio foi um pouco dispendioso o tal sistema; era
preciso pagar mais a empresa funeraria e apertar a roupa dos pobres que
emagreciam descomunalmente depois de uma semana ou duas de mingau;
mas o numero dos habitantes do asilo de mendicidade diminuiu
muito e os administradores estavam no setimo ceu.
O lugar onde as criancas comiam era uma grande sala, com chao de
tijolo, tendo ao fundo uma grande caldeira onde o cozinheiro do asilo,
de avental a cintura e ajudado por duas mulheres, tirava o mingau nas
horas de refeicao.
Cada crianca recebia uma tigelinha cheia e nada mais, exceto nos dias
de festa, em que se lhes dava mais duas oncas e um quarto de pao. As
tigelas nunca precisavam ser lavadas; os pequenos, com as suas colheres,
deixavam-nas completamente limpas e lustrosas; e quando acabavam esta
operacao, que nao durava muito, porque as colheres eram quase do tamanho
das tigelas, ficavam contemplando a caldeira com olhos tao avidos
que pareciam devora-la e lambiam os dedos para nao perderem algum
resto do mingau que lhes ficasse.
Geralmente a crianca tem excelente apetite. Oliver Twist e seus companheiros
sofriam durante meses as torturas de uma lenta consumpcao, e
a fome acabava por lhe transviar o espirito a ponto que um menino, alto
demais para a idade que tinha e pouco acostumado a semelhante existencia
(seu pai tivera uma casa de pasto), insinuou um dia aos seus companheiros
que, se nao tivesse maior porcao de mingau por dia, receava devorar
de noite o pequeno que dormia com ele, o qual era mais crianca e debil;
falando assim, tinha ele o olhar desvairado e faminto e os outros acreditavam
que ele faria realizar a ameaca.
Deliberaram entre si que um deles fosse nessa mesma noite pedir ao
cozinheiro segunda porcao de mingau.
A sorte designou Oliver.
De noite, as criancas ocuparam os seus lugares; o cozinheiro do asilo
estava ao pe da caldeira; foi servido o mingau; proferiu-se o benedicite.
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ÇdÇf
O mingau desapareceu; as criancas cochichavam, faziam sinais a Oliver,
que era acotovelado pelos que lhe ficavam mais perto. A fome exasperava
o pobre Oliver, e o excesso de miseria tinha-lhe tirado os cuidados; deixou
o lugar e, caminhando com a tigela e a colher na mao, disse com voz
tremula e assustada:
¡X Eu queria mais um bocado de mingau.
O cozinheiro, homem gordo e bojudo, ficou palido como um defunto;
pos as maos na caldeira para nao cair; as velhas que o acompanhavam
ficaram geladas de espanto e as criancas, de terror.
¡X Que diz? ¡X perguntou o cozinheiro com voz alterada.
¡X Eu queria mais um bocadinho ¡X respondeu Oliver.
O cozinheiro deu com a colher de pau na cabeca de Oliver, apertou-o
nos bracos e chamou o bedel em altos gritos.
O conselho estava em sessao solene quando o Sr. Bumble, fora de si,
entrou na sala e, dirigindo-se ao presidente, disse:
¡X Sr. Limbkins, peco-lhe perdao; Oliver Twist pediu mais.
O pasmo foi geral; pintara-se o horror em todos os semblantes.
¡X Pediu mais? ¡X disse o Sr. Limbkins. ¡X Acalme-se Sr. Bumble e
responda calmamente: ¡X Que sera, o senhor disse que ele pediu mais
comida depois de ter recebido a ceia marcada pelo regulamento?
¡X Sim, senhor ¡X respondeu Bumble.
¡X Esse pequeno acaba infalivelmente na forca ¡X disse o sujeito do
colete branco.
Ninguem se opos a esta profecia. Rompeu logo vivissima discussao; Oliver
foi preso, e no dia seguinte pregou-se uma carta na porta do asilo oferecendo
cinco libras esterlinas a quem quisesse livrar a paroquia de Oliver Twist;
por outros termos, dava-se cinco libras esterlinas a Oliver Twist, a quem
quer que precisasse de um aprendiz para qualquer oficio ou negocio.
¡X Nunca tive mais profunda certeza ¡X dizia o sujeito do colete branco
lendo no dia seguinte o cartaz ¡X do que nesta ocasiao: aquele rapaz ha
de acabar na forca!
Como eu me proponho a mostrar, pela obra adiante, se o sujeito do
colete branco tinha ou nao razao, prejudicaria agora esta narracao se fizesse
pressentir desde ja o desenlace dela.
Caminhemos devagar.
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ÇdÇg
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ÇdÇh
Capitulo III
De como Oliver Twist escapou de um emprego que nao era sinecura.
Depois de haver cometido o crime imperdoavel de pedir mais uma dose
de mingau, Oliver esteve durante oito dias estreitamente encerrado no carcere,
a que o mandara a misericordia do Conselho de administracao.
A primeira vista, podia supor-se que, se houvesse recebido com respeito
a profecia do sujeito do colete branco, Oliver tinha nas maos o meio de
plantar a reputacao profetica daquele sabio administrador, atando uma
ponta do seu lenco num prego e pendurando-se na outra ponta. So havia
um obstaculo para a execucao deste ato: e que, por ordem expressa do
conselho, assinalada, rubricada e selada por todos os membros, foram
proibidos os lencos no asilo por serem objetos de luxo. O segundo obstaculo
era a tenra idade de Oliver.
Oliver chorou amargamente durante dias inteiros; e, quando vinham
as longas e tristes horas da noite, punha as maozinhas diante dos olhos
para nao ver a escuridao. Acocorava-se em um canto para dormir. As vezes
acordava assustado e tremulo, nessas ocasioes encostava-se a parede,
como se em tocar essa superficie dura e fria achasse prevencao contra as
trevas e solidao que o rodeavam.
Nao imaginem os inimigos do sistema da lei dos pobres que, durante a
sua prisao, Oliver fosse privado do exercicio, da sociedade e das consolacoes
religiosas.
Quanto ao exercicio, como o tempo era frio, tinha ele licenca para se
lavar todas as manhas num tanque, em presenca do Sr. Bumble. Podia
resultar-lhe daqui algum defluxo; mas o Sr. Bumble removia esse inconveniente
ativando a circulacao do sangue do pequeno mediante algumas
bengaladas. Quanto a sociedade, levavam-no de dois em dois dias ao refeitorio
das criancas e ai pregavam-lhe um sermao, para exemplo e
edificacao dos outros.
OLIVER TWIST
ÇdÇi
Longe de lhe recusarem as consolacoes religiosas, era ele conduzido a
pontapes, todas as noites, a sala de reza, onde, para maior gosto de sua
alma, os outros pequenos repetiam uma oracao correta e aumentada pelo
conselho. Nessa oracao, os meninos pediam ao ceu que os fizesse bons,
virtuosos, contentes e obedientes e que os preservasse dos crimes, vicios
de Oliver Twist, protegido e guiado por Satanas, amostra direta dos produtos
do cao tinhoso.
Ora, aconteceu que um dia de manha o Sr. Gamfield, limpador de
chamines, ia descendo a rua e pensando na maneira de pagar uma porcao
de alugueis atrasados. Quanto mais pensava e calculava, tanto menos chegava
a soma de cinco libras esterlinas de que precisava. No seu desespero
de nao poder perfazer aquela soma, batia na besta e no burro, quando deu
com os olhos no cartaz que estava pregado na porta do asilo.
¡X Ah! Ah! ¡X disse o Sr. Gamfield ao burro.
O burro estava nesse momento inteiramente distraido; provavelmente
cogitava no almoco e perguntava a si mesmo se nao teria um ou dois talos
de couve para comer quando o aliviassem dos dois sacos de fuligem que
levava no carrinho. Nao deu atencao a ordem do amo e continuou a andar.
O Sr. Gamfield dirigiu ao burro uma horrivel praga, correu atras dele,
desfechou-lhe a cabeca uma tremenda pancada que despedacaria qualquer
outro cranio que nao fosse o de um burro. Segurou-lhe na redea e
sacudiu-lhe a queixada para lhe recordar seus deveres de obediencia; deu
volta com ele, repetiu a pancada e trepou a uma pedra para ler o cartaz.
O sujeito do colete branco estava de pe a porta, com as maos nas costas,
depois de ter opinado profundamente na sala do conselho; tinha assistido
a discussao entre o Sr. Gamfield e o burro; sorriu com satisfacao vendo o
Sr. Gamfield aproximar-se do cartaz, porque viu que era ele o amo que
convinha a Oliver.
O Sr. Gamfield sorriu tambem, lendo o cartaz, porque eram justamente
as cinco libras de que ele precisava; e quanto a crianca, como conhecia
o regime do asilo, suspeitou que devia ser assaz magra para subir a uma
chamine. Releu o cartaz e, descobrindo respeitosamente a cabeca, aproximou-
se do sujeito do colete branco.
¡X Ha aqui um menino que a paroquia deseja fazer aprendiz de alguma
coisa? ¡X disse ele.
¡X Sim ¡X respondeu o sujeito do colete branco com um benevolo
sorriso. ¡X Que me quer?
CHARLES DICKENS
ÇdÇj
¡X Se a paroquia quiser que ele aprenda um oficio agradavel como o
de limpador de chamines, por exemplo ¡X disse o Sr. Gamfield ¡X, preciso
de um aprendiz e estou disposto a encarregar-me dele.
¡X Entre ¡X disse o sujeito do colete branco.
Quando o Sr. Gamfield expos ao conselho o que queria, disse o Sr.
Limbkins, presidente:
¡X O oficio de limpador de chamine e bem porco.
¡X Tem-se visto morrerem as criancas nas chamines ¡X disse outro sujeito.
O Sr. Gamfield dissipou esta duvida, alegrando muito ao sujeito do
colete branco, que alias ficou serio depois de um olhar do presidente. O
conselho entrou a deliberar durante alguns minutos, mas em voz tao baixa
que so se ouviam estas palavras: ¡§Diminuicao de despesa; sejamos
economicos; pode-se fazer um bom relatorio¡¨. Estas mesmas palavras so
se ouviam porque eram energicamente repetidas.
Falou enfim o presidente:
¡X Examinamos o seu pedido e nao podemos dar-lhe o que deseja.
¡X Repelimo-lo completamente ¡X disse o sujeito do colete branco.
¡X Sem hesitacao ¡X acrescentaram outros membros do conselho.
O Sr. Gamfield tinha sobre si a acusacao frivola de ter morto tres ou
quatro criancas a cacete; lembrou-se de que o conselho, por um capricho
singular, teria em vista esta circunstancia de segunda ordem. Nao quis
aludir a ela e tratou de retirar-se.
¡X Nao querem dar-me o pequeno? ¡X disse ele na soleira da porta.
¡X Nao ¡X disse o presidente ¡X, salvo se diminuirmos a recompensa.
Depois de alguma discussao ficou assentado que so se dariam tres libras
e dez shillings. Mandaram buscar Oliver, que estava na prisao. Vestiramlhe
uma camisola lavada e deram-lhe uma tigela de mingau acompanhada
de duas oncas de pao, como nos dias de festa.
O Sr. Bumble avisou o pequeno de que o conselho ia da-lo a uma pessoa
que lhe ensinaria um oficio e conduziu-o a sala onde trabalhava o
magistrado que devia lavrar o contrato. Era uma grande sala com uma
grande janela. Estavam a uma secretaria dois sujeitos velhos, um lendo
um jornal, outro examinando um pergaminho com o auxilio de oculos de
tartaruga. Em frente da secretaria estava o Sr. Limbkins acompanhado
do Sr. Gamfield. Havia mais umas tres ou quatro pessoas.
O sujeito dos oculos adormeceu a pouco e pouco, e houve um curto
silencio, depois da entrada de Oliver.
OLIVER TWIST
ÇeÇa
¡X Aqui esta o menino ¡X disse o Sr. Bumble.
¡X Gostara ele do oficio de limpar chamines?
¡X Morre por isso ¡X responde Bumble beliscando o menino.
¡X Quer ser limpador de chamines?
¡X Nao pede outra coisa ¡X tornou Bumble.
O magistrado dos oculos que havia feito estas perguntas, tendo acordado
ao aviso do Sr. Bumble, disse:
¡X Bem, facamos os contratos.
Pos os oculos no nariz e procurou o tinteiro.
Era o momento critico do destino de Oliver. Se o tinteiro estivesse no
lugar onde o juiz o procurava, o contrato ficaria lavrado e Oliver seria entregue
ao limpa-chamines. Mas quis o acaso que o tinteiro estivesse justamente
debaixo do nariz do sujeito, de maneira que ele correu os olhos por
toda a parte sem o achar. Durante essa pesquisa, deu ele com os olhos na
cara de Oliver Twist, cuja expressao de medo e horror era tao visivel que
nao podia escapar ao juiz, apesar de miope como era.
Daqui resultou que o juiz perguntou brandamente a Oliver se queria
ser limpa-chamines e este ajoelhou-se dizendo que preferia morrer de
fome. O contrato nao foi lavrado. O Sr. Bumble quis intervir.
¡X Cale-se ¡X disse o juiz.
O Sr. Bumble ficou assombrado.
¡X Recusamos ¡X disse o juiz ¡X a nossa sancao a este contrato.
¡X Espero ¡X disse o Sr. Limbkins ¡X que o testemunho sem valor de
uma crianca nao pora em duvida o procedimento das autoridades.
¡X Nao temos nada com essa parte ¡X disse em tom seco o magistrado.
¡X Levem esse pequeno para o asilo e tratem-no bem.
Na mesma noite, o sujeito do colete branco afirmou formalmente que
Oliver nao so seria enforcado, mas ate esquartejado. O Sr. Bumble abanou
a cabeca com ar sombrio e misterioso e disse que desejava que tal nao
acontecesse; a isto respondeu o Sr. Gamfield que estimaria bem ter ficado
com o pequeno.
No dia seguinte, o publico foi informado de que Oliver continuava em
almoeda e que a pessoa que se encarregasse dele receberia cinco libras
esterlinas.
CHARLES DICKENS
ÇeÇb
Capitulo IV
Oliver acha um emprego e faz a sua entrada no mundo.
Nas grandes familias, quando um rapaz se adianta em anos e nao se
pode arranjar para ele um bom lugar por compra, sucessao ou reversibilidade,
costuma-se mete-lo a bordo. O conselho da administracao, para
seguir tao prudente exemplo salutar, deliberou acerca da oportunidade
de embarcar Oliver Twist a bordo de algum navio mercante com destino
a algum porto insalubre.
Pareceu-lhe que isto era o melhor. Era provavel que o mesmo capitao
do navio desse cabo do canastro ao terrivel Oliver.
Quanto mais pensavam nisto, melhor lhes parecia a coisa. A conclusao
foi que o unico meio de assegurar o futuro de Oliver era embarca-lo.
O Sr. Bumble foi mandado em comissao a ver se achava algum capitao
que precisasse de um grumete por quem pessoa alguma se interessava.
Voltava ao asilo para dar conta da sua missao, quando encontrou a porta o
empresario de enterros da paroquia, o Sr. Sowerberry em pessoa.
O Sr. Sowerberry, alto e magro, trajando casaca preta, meias da mesma
cor remendadas e sapatos primos-irmaos das meias. A natureza nao
lhe dera a fisionomia uma expressao risonha; mas como ele achava em
seu oficio ampla materia para rir, tinha o andar por assim dizer elastico
e a cara alegre. O empresario de enterros apertou cordialmente a mao do
Sr. Bumble.
¡X Venho ¡X disse ele ¡X tomar a medida de duas mulheres que morreram
a noite passada.
¡X O senhor ha de enriquecer ¡X disse o bedel introduzindo o polegar
e o indice na boceta que apresenta o empresario dos enterros, boceta que
tinha a forma de um pequeno caixao funebre privilegiado sem garantia
do Governo. ¡X Digo-lhe que ha de enriquecer ¡X repetiu o Sr. Bumble
batendo-lhe amigavelmente no ombro com a bengala.
OLIVER TWIST
ÇeÇc
¡X Parece-lhe? ¡X disse o Sr. Sowerberry com um tom de quem nao
dizia sim nem nao. ¡X Os precos da administracao sao muito pequenos.
¡X E os seus caixoes tambem ¡X respondeu o bedel com um ar que se
aproximava da pilheria, tanto quanto convinha a um funcionario importante.
O Sr. Sowerberry ficou admirado, como convinha, da finura deste dito
e soltou uma gargalhada.
¡X E verdade, Sr. Bumble ¡X disse ele. ¡X Cumpre confessar que
desde a adocao de novo sistema de alimentacao do asilo os caixoes sao um
pouco mais estreitos e menos profundos que antigamente; mas e preciso
que a gente ganhe alguma coisa, a madeira custa caro e o ferro vem de
Birmingham pelo canal.
¡X Cada oficio tem suas vantagens e desvantagens ¡X disse o Sr. Bumble
¡X, e um bom lucro vale alguma coisa.
¡X Dir-lhe-ei contudo ¡X continuou o Sr. Sowerberry ¡X que eu tenho
contra mim uma grande desvantagem; e que as pessoas robustas morrem
primeiro. Quero dizer que as pessoas que vivem bem durante muito tempo
sao as primeiras que espicham a canela quando entram no asilo; e olhe
que tres ou quatro polegadas mais do que o calculo primitivo de um caixao
fazem um grande furo nos lucros, principalmente a quem sustenta
uma familia como eu.
O Sr. Sowerberry dizia isto com o tom indignado de um homem que
tem direito de se queixar; o Sr. Bumble compreendeu que isto podia produzir
algumas reflexoes desfavoraveis aos interesses da paroquia e mudou
de conversa.
Oliver Twist foi o novo assunto.
¡X Conhecera o senhor por acaso ¡X disse o Sr. Bumble ¡X algum que
precise de um aprendiz? E um menino do asilo que la temos como uma
carga as costas da paroquia. Paga-se bem, Sr. Sowerberry, paga-se bem!
E falando assim, o Sr. Bumble levantava a bengala e apontava para o
cartaz, batendo tres pancadinhas nas palavras cinco libras esterlinas que
estavam impressas em letras grandes.
¡X Homem! ¡X disse o empresario de enterros segurando na aba da
casaca do Sr. Bumble. ¡X E justamente o que eu precisava... Que lindo
botao e esse seu; nao tinha reparado nele.
¡X Sim, nao e feio ¡X disse o bedel, olhando com orgulho para os grandes
botoes de cobre que ornavam a sua casaca. ¡X A gravura e igual ao
CHARLES DICKENS
ÇeÇd
selo paroquial: o bom samaritano tratando do viajante ferido. Foi um
presente de festas que me fez o conselho. A primeira vez que usei da
casaca foi para assistir a devassa relativa aquele mercador sem recursos
que morreu de noite debaixo da porta.
¡X Lembra-me ¡X disse o empresario. ¡X O juri declarou que o homem
morreu de fome e frio, nao?
O Sr. Bumble fez com a cabeca um sinal afirmativo.
¡X E a sentenca acrescentava, creio eu, por modo especial, que se o
oficial dos socorros...
¡X Tolices! Tolices! ¡X disse o bedel. ¡X Se o conselho desse atencao a
quantas coisas dizem os tres jurados ignorantes, teria muito que fazer.
¡X E verdade ¡X disse o empresario. ¡X Mas deixemos la os jurados.
O Sr. Bumble tinha-se encolerizado. Tirou o chapeu, e do chapeu um
lenco, com o qual enxugou o suor que lhe escorria da testa, pos outra vez
o chapeu; e, voltando-se para o empresario, disse em tom calmo:
¡X E o pequeno? Quer o pequeno?
¡X O senhor sabe ¡X respondeu o fabricante de caixoes de defunto ¡X
que eu pago um avultado imposto para os pobres.
¡X E entao? ¡X disse o Sr. Bumble.
¡X Entao, e que se eu pago muito para os pobres, tenho o direito de os
explorar tambem como posso; assim... Creio que esse pequeno pode ficar
comigo.
O Sr. Bumble segurou no braco do fabricante de caixoes de defunto e
fe-lo entrar no asilo. O Sr. Sowerberry conferenciou com os administradores
durante cinco minutos e ficou assentado que Oliver iria nesse mesmo
dia para casa dele e que, se no cabo de certo tempo, Oliver produzisse mais
com o seu trabalho do que gastava com a comida, ficaria com o fabricante
durante certo numero de anos, com o direito de o empregar a sua vontade.
O pequeno Oliver foi levado nessa mesma noite aos administradores e
informado de que ia entrar imediatamente, como aprendiz, na casa de
um fabricante de caixoes de defunto, e que, se se queixasse de sua posicao,
se volvesse ao asilo, seria embarcado para ser morto no mar ou a
cacete. Oliver nao manifestou nenhuma comocao. Os administradores
declararam que ele era um peralta sem alma e deram ordem ao Sr. Bumble
para leva-lo imediatamente.
Oliver nao deixava de ter sensibilidade, mas os maus-tratos e que o
tinham embrutecido tanto. Ouviu a noticia sem dizer palavra, pos a baOLIVER
TWIST
ÇeÇe
gagem debaixo do braco, e nao era pesada, porque nao passou de um
pequeno embrulho, enterrou o bone nos olhos e, agarrando-se outra vez a
aba da casaca do Sr. Bumble, foi levado por esse funcionario a casa do
fabricante de caixoes de defunto.
Durante algum tempo o Sr. Bumble arrastou Oliver apos si sem lhe prestar
atencao. Ventava; o pequeno Oliver ia completamente escondido pela casaca
do bedel, que se abria, deixando ver o colete de rebuco. No momento de
chegar, o Sr. Bumble julgou conveniente ver se o pequeno estava capaz de
aparecer e o fez com aquele ar proprio de um protetor benevolo.
¡X Oliver ¡X disse ele.
¡X Senhor? ¡X respondeu a crianca com voz fraca e tremula.
¡X Nao enterra assim o bone; levanta a cabeca.
Oliver obedeceu, passando a mao pelos olhos; mas uma lagrima lhe
tremia nos olhos quando ele os levantou para o Sr. Bumble e correu pela
face abaixo; atras dessa veio outra, e outra e outra e outra. A crianca nao
as pode reter, os seus esforcos foram vaos; largou a aba do bedel, pos as
maos na cara e uma torrente de lagrimas correu por entre os seus dedos
emagrecidos.
¡X Bom! ¡X disse o Sr. Bumble, parando e lancando um olhar feroz ao
seu protegido. ¡X De todas as criancas mais ingratas, mais viciosas que
tenho visto, voce e...
¡X Nao, nao senhor ¡X disse Oliver solucando e agarrando-se a mao
que empunhava a famosa bengala. ¡X Nao, nao senhor; eu quero ser bom;
sim eu hei de ter juizo... eu sou crianca... eu sou... tao... tao...
¡X Tao o que? ¡X perguntou o Sr. Bumble admirado.
¡X Tao infeliz! ¡X disse a crianca. ¡X Todos me detestam. Oh! senhor,
eu lhe peco, nao se zangue comigo!
A crianca batia no peito, solucava e olhava para o bedel com angustia e
terror.
Durante alguns instantes, o Sr. Bumble contemplou pasmado a cara assustada
e triste de Oliver; tossiu tres ou quatro vezes, como um homem
endefluxado, e disse a Oliver que enxugasse os olhos e tivesse juizo. Depois
segurou-lhe na mao e penetrou na casa do fabricante de caixoes de defunto.
Estava este a preparar-se para lancar algumas entradas no livro das
contas, a luz de uma ruim vela, quando o Sr. Bumble entrou.
¡X Ah! ¡X disse ele, erguendo os olhos e parando de escrever. ¡X E o
senhor?
CHARLES DICKENS
ÇeÇf
¡X Em pessoa ¡X respondeu o bedel. ¡X Ca lhe trago o pequeno.
Oliver cumprimentou o Sr. Sowerberry.
¡X Ah! ¡X O pequeno de que falamos ¡X disse o empresario de enterros
levantando a vela para ver Oliver. ¡X O minha dona, venha ca fora.
A Sra. Sowerberry saiu de uma salinha que ficava por tras da loja; era
uma mulher pequena, magra, arrebatada, uma verdadeira Megera.
¡X Minha dona ¡X disse o Sr. Sowerberry com deferencia ¡X, aqui esta
a crianca de quem lhe falei.
Oliver fez outro cumprimento.
¡X Meu Deus! ¡X disse ela. ¡X Como esta magrinho!
¡X Sim, nao e forte ¡X disse o Sr. Bumble olhando severamente para
Oliver como se a culpa fosse dele ¡X, mas ha de desenvolver-se.
¡X Sim ¡X disse ela ¡X, ha de desenvolver-se com a nova comida. Que
ganhamos nos com esses filhos da paroquia? Custam mais do que valem.
Vamos, desce, esqueleto.
Dizendo isto, abriu uma porta e empurrou Oliver para uma escada
ingreme que conduzia a uma especie de adega, sombria e umida, ao pe da
fogueira, que se chamava cozinha, onde estava uma rapariga suja, com
sapatos rotos e grossas meias azuis e rasgadas.
¡X Carlota ¡X disse a Sra. Sowerberry, que acompanhara Oliver ¡X, de
a esse pequeno os restos que se puseram de lado para dar ao cao; ele nao
voltou hoje a casa, passara sem comer. E espero que nao torcas o nariz,
meu pecurrucho.
Oliver, cujos olhos faiscavam com a ideia de comer carne e morria de
vontade de a devorar, respondeu que nao, e os restos do jantar foram
postos diante dele.
Eu quisera que algum filosofo de estomago cheio, em quem a boa comida
nao gera bilis, algum desses filantropos sem sangue nem alma, visse
Oliver Twist atirar-se aqueles restos que nem o cao quis comer e contemplasse
a avidez com que ele partia e engolia os pedacos. So ha uma coisa que
eu preferia a isso; era ver o filosofo comer a mesma com igual prazer.
¡X Entao ¡X disse a mulher, quando Oliver acabou a ceia, que ela assistiu
com um horror silencioso, tremendo pelo futuro apetite do pequeno ¡X,
acabaste?
Como nao havia mais nada, Oliver respondeu que sim.
¡X Anda comigo ¡X disse ela.
Travou de uma candeia suja e fumegante e o levou ao alto da escada.
OLIVER TWIST
ÇeÇg
¡X Tua cama e debaixo do balcao. Nao tens medo de dormir entre
caixoes de defunto? E que importa que tenhas medo? Nao dormiras em
outra parte. Ainda. Nao me facas estar a tua espera.
Oliver, sem perder tempo, acompanhou docilmente a sua nova ama.
CHARLES DICKENS
ÇeÇh
Capitulo V
Oliver trava novos conhecimentos; assiste a um enterro
e fica com uma ma ideia do oficio.
Apenas ficou so na loja, Oliver pos a candeia num banco e deitou um
olhar timido a roda de si, com um sentimento de terror que muita gente
de maior idade podia facilmente compreender.
Havia no meio da loja um caixao por acabar, e tinha uma aparencia tao
lugubre que Oliver estremecia sempre que olhava para ele. Esperava ver
surgir dali a cabeca de um espectro horrivel cujo aspecto o faria morrer
de medo.
Ao longo da parede estava uma longa enfiada de tabuas de pinho cortadas
uniformemente, que pareciam outros tantos espectros de largas espaduas,
com as maos nas algibeiras: placas de metal, argolas, pregos,
pedacos de pano preto juncavam o assoalho.
Por tras do balcao, na parede, a guisa de adorno, havia dois urubus
engravatados e um carro conduzindo um feretro. A loja estava fechada e
quente; a atmosfera parecia toda impregnada de um cheiro a defunto; o
vao do balcao onde foi posta a cama de Oliver tinha ares de cova.
Oliver acordou de manha, ouvindo um grande pontape na porta da
loja, pontape que foi repetido vinte e cinco vezes, com colera, enquanto
ele se vestia as pressas. Quando ele comecou a puxar os ferrolhos, cessaram
os pontapes e ouviu-se uma voz dizer:
¡X Abre ou nao?
¡X Sim, senhor, o quanto antes ¡X disse Oliver dando volta a chave.
¡X Tu es o novo aprendiz? ¡X disse a voz pelo buraco da fechadura.
¡X Sim, senhor.
¡X Quantos anos tem?
¡X Dez anos.
¡X Bem, vou sacudir-te a preguica ¡X disse a voz. ¡X Vais ver, bastardo!
OLIVER TWIST
ÇeÇi
Depois desta graciosa promessa, a voz entrou a assobiar.
Oliver puxou tremulamente o ferrolho e abriu a porta.
Olhou para um lado e outro, pensando que o individuo que lhe falava
dera alguns passos para se aquecer; a unica pessoa que viu foi um rapazola
assentado em uma grande pedra em frente da casa, ocupado em comer
uma fatia de pao com manteiga, que ia cortando em pedacos do tamanho
da boca e engolia com avidez.
¡X Perdao ¡X disse Oliver, nao vendo ninguem. ¡X Seria o senhor que
bateu aqui?
¡X Dei pontapes ¡X respondeu o outro.
¡X Precisa de algum caixao? ¡X perguntou ingenuamente Oliver.
O rapazinho pareceu furioso com isto e disse a Oliver que ele e que
precisaria dentro de pouco tempo de um caixao, se tomasse a liberdade
de tais gracejos com os seus superiores.
¡X Naturalmente nao sabes quem eu sou? ¡X disse ele descendo do
frade de pedra com uma edificante gravidade.
¡X Nao, senhor ¡X respondeu Oliver.
¡X Eu sou o Sr. Noe Claypole ¡X disse o outro ¡X, e tu es meu subordinado.
Anda la, tira as trancas das portas, peralta!
O Sr. Claypole acompanhou estas palavras com um pontape e entrou
na loja com um ar de dignidade, que lhe deu muita importancia, posto
que seja dificil a um rapaz, de cabeca grande, olhos miudos e fisionomia
estupida, parecer majestoso em qualquer situacao que seja; muito mais
quando, alem de tudo isto, tem um nariz de pimentao.
Oliver tirou as trancas da porta e, quando quis levar uma delas para o
patio que estava ao pe da casa, e onde elas ficavam, escorregou e quebrou
um vidro; Noe foi graciosamente ajuda-lo, consolou-o dizendo que havia de
pagar, e dignou-se apertar-lhe a mao. O Sr. Sowerberry desceu logo, e quase
imediatamente apareceu a Sra. Sowerberry; Oliver pagou o vidro, segundo
a predicao de Noe, e foi com este para a cozinha a fim de almocar.
¡X Ande ca para perto do fogo, Noe ¡X disse Carlota. ¡X Eu tirei do
almoco do amo um pedaco de toucinho para voce. Oliver, fecha a porta;
tira aqueles pedacos de pao; aqui esta o teu cha; vai comer la a um canto
e nao te demores, porque e preciso ir tomar conta da loja.
¡X Ouves, enjeitado? ¡X disse Noe Claypole.
¡X Que traquinas e voce! ¡X disse Carlota. ¡X Deixe aquele pequeno
sossegado.
CHARLES DICKENS
ÇeÇj
¡X Deixa-lo sossegado! ¡X disse Noe. ¡X Creio que e o que todos fazem.
Nao tem pai nem mae que o incomodem; todos os seus parentes deixam
que ele faca o que quer... Que diz voce, Carlota?
¡X Voce tem coisas, Noe! ¡X disse Carlota rindo as gargalhadas.
Noe fez o mesmo; depois deitaram um olhar desdenhoso para o pobre
Oliver Twist, que tiritava assentado em uma caixa no fundo da cozinha e
comia os restos de pao duro que se lhe reservara especialmente.
Noe era pobre, mas nao do asilo da mendicidade; nao era enjeitado,
porque podia remontar a sua genealogia ate o pai e a mae, que moravam
perto dali; a mae era lavadeira; o pai era ex-soldado e bebado,
tinha uma perna de pau e uma pensao de dois pence e meio por dia. Os
caixeiros da vizinhanca tiveram por muito tempo o costume de chamar
a Noe os nomes mais injuriosos, e ele os sofreu sem dizer uma palavra.
Mas agora que a sorte lhe pusera no caminho um pobre orfao sem nome,
a quem o ente mais vil podia apontar com desprezo, vingava-se com
usura. Belo assunto de reflexao e este. Vemos assim com que lindo aspecto
se mostra as vezes a natureza humana e com que semelhanca as
mesmas qualidades amaveis se desenvolvem no mais puro fidalgo e mais
baixo pobretao.
Havia tres semanas ou um mes que Oliver morava em casa do empresario
de enterros; este com a mulher, estando as portas fechadas, ceavam
na salinha do fundo, quando o Sr. Sowerberry, depois de ter contemplado
a mulher com o ar mais respeitoso, comecou a conversa.
¡X Minha cara amiga... ¡X Ia continuar, mas a Sra. Sowerberry levantou
os olhos com tao ma catadura que ele estacou.
¡X Que tens? ¡X disse ela zangada.
¡X Nada, minha dona, nada ¡X disse o Sr. Sowerberry.
¡X Es um asno ¡X disse a Sra. Sowerberry.
¡X Nao, nao, minha dona ¡X disse humildemente o marido ¡X, eu pensava
que voce nao queria prestar-me atencao; eu queria dizer...
¡X Oh! Guarde la para si o que queria dizer ¡X interrompeu a esposa.
¡X Eu nada valho; nao me consulte, ouviu? Nao me quero meter nos seus
negocios.
Dizendo isto, soltou uma risadinha afetada que fazia supor terriveis
consequencias.
¡X Mas minha dona ¡X disse o Sr. Sowerberry ¡X, eu preciso de sua
opiniao.
OLIVER TWIST
ÇfÇa
¡X Que lhe importa a minha opiniao? ¡X replicou a mulher com arrebatamento.
¡X Peca conselhos a outros.
E repetiu a risadinha afetada que fazia tremer o Sr. Sowerberry.
Nisto, seguia ela a politica comum das mulheres, e que mais triunfos
lhes da; obrigava o marido a solicitar como um favor a licenca de lhe
dizer o que ela estava curiosa por saber e, depois de uma discussao de tres
quartos de hora, deu a reclamada licenca.
¡X Quero falar ¡X disse o Sr. Sowerberry ¡X, quero falar do pequeno
Oliver; tem uma boa cara.
¡X Grande milagre! Come bastante para ter boa cara! ¡X respondeu ela.
¡X As suas feicoes tem uma expressao de tristeza que lhe fica a matar
¡X continuou o Sr. Sowerberry. ¡X Creio que seria um excelente urubu.
A Sra. Sowerberry levantou a cabeca com ar de pasmo; o marido reparou
nisso e, sem lhe dar tempo de observar nada, continuou:
¡X Nao digo urubu para acompanhar os enterros das pessoas adultas,
mas so para os enterros das criancas; seria uma novidade haver urubu
com a mesma idade do defunto. Acredite que faria grande efeito.
A Sra. Sowerberry, que tinha apuradissimo gosto para o que diz respeito
a enterros, ficou impressionada com a novidade desta ideia; mas, como
comprometeria a sua dignidade aprovando o marido, nas circunstancias
atuais, contentou-se com perguntar desdenhosamente por que razao nao
lhe tinha acudido a mais tempo aquela ideia. O Sr. Sowerberry concluiu
com razao que a proposta era bem recebida; decidiu-se logo que Oliver
seria iniciado nos misterios da profissao e que, para isso, acompanharia o
amo na primeira ocasiao que se oferecesse.
Nao tardou a ocasiao.
No dia seguinte de manha, depois do almoco, o Sr. Bumble entrou na
loja e, apoiando a bengala no balcao, tirou da algibeira uma grande carteira
de couro e deu um papelinho ao Sr. Sowerberry.
¡X Ah! ¡X disse o fabricante de caixoes, lendo o papel com olhos alegres.
¡X E uma encomenda de caixao.
¡X Um caixao em primeiro lugar; depois um enterro paroquial ¡X disse
o Sr. Bumble fechando a carteira, que era bojuda como ele.
¡X Bayton? ¡X disse o empresario de enterros acabando de ler e olhando
para o Sr. Bumble. ¡X E a primeira vez que ouco este nome.
¡X Uns teimosos ¡X respondeu o Sr. Bumble abanando a cabeca. ¡X
Uns teimosos, e creio ate que orgulhosos.
CHARLES DICKENS
ÇfÇb
¡X Orgulhosos? ¡X disse o Sr. Sowerberry com um riso zombeteiro. ¡X
Esta e demais.
¡X Causa lastima ¡X disse o bedel. ¡X Causa do.
¡X Tem razao ¡X respondeu o fabricante de caixoes com ar aprobatico.
¡X So anteontem de noite ouvimos falar deles ¡X disse o bedel. ¡X E
nada saberiamos se uma mulher que mora na mesma casa nao se dirigisse
a comissao paroquial para pedir que mandasse um medico paroquial
assistir uma mulher que esta muito mal. O medico tinha saido para jantar;
mas o seu ajudante, que e um rapaz muito habil, mandou uma porcao
de remedios em uma garrafa de graxa.
¡X Isto e o que se chama prontidao ¡X disse o empresario.
¡X Justo ¡X disse o bedel ¡X, mas qual foi o resultado? Quer saber a que
ponto foi a ingratidao daquele rebelde? Acreditara o senhor que o marido
recambiou o remedio, dizendo que nao convinha a molestia da mulher? Compreende
isto? Um remedio excelente, energico, salutar, que se tinha empregado
com muito bom exito ha oito dias, a dois trabalhadores irlandeses e a
um homem do ganho; um remedio que se lhe mandou de graca, com a garrafa
de quebra; e ele manda dizer que a mulher nao toma o remedio!
Como a atrocidade deste procedimento se apresentava em toda a sua
forca ao espirito do Sr. Bumble, foi-lhe impossivel deixar de dar uma
bengalada no balcao.
Estava vermelho de indignacao.
¡X Oh! ¡X disse o Sr. Sowerberry. ¡X Nunca vi coisa assim...
¡X Nao! Nunca! ¡X disse o bedel. ¡X Infamia tal nunca vi eu; mas
agora que esta morta e preciso enterra-la; quanto antes melhor.
O Sr. Bumble, no seu acesso, pos o chapeu de tres bicos atravessado e saiu.
¡X Vamos ¡X disse o Sr. Sowerberry quando ficou so ¡X, vamos acabar
com este enterro. Noe, toma conta da loja; Oliver, poe o bone e segue-me.
Oliver acompanhou o patrao.
Caminharam algum tempo pelo mais populoso bairro da cidade; depois
desceram uma viela estreita mais suja e miseravel que as outras e
pararam para procurar a casa em questao. De ambos os lados da rua, as
casas eram altas, mas velhissimas, e ocupadas por gente pobrissima, como
era facil reconhecer, ainda que nao atravessassem as vezes a rua homens
e mulheres curvados e andrajosos.
A maior parte das casas tinha lojas hermeticamente fechadas e caindo
em ruinas; mas so os andares superiores eram habitados. Outras ameacaOLIVER
TWIST
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vam cair e eram escoradas por grossas estacas de pau que estavam solidamente
presas no chao; mas esses predios rachados pareciam servir de asilo
a alguns vagabundos, porque muitas das tabuas grosseiras que tapavam
a porta tinham sido arrancadas como que era para dar passagem a um
corpo. O rego estava sujo e estagnado. Os proprios ratos que passavam de
um lado para o outro eram magros como carapaus.
Nao havia cordao de campainha na porta em que pararam Oliver e seu
amo; este entrou as apalpadelas num corredor escuro, disse a Oliver que o
acompanhasse e nao tivesse medo, subiu ao primeiro andar e bateu devagarinho
a uma porta.
Veio abri-la uma mocinha de 13 para 14 anos. O empresario de enterros
viu logo pelo aspecto do quarto que era ali mesmo que ele ia. Entrou
acompanhado por Oliver.
Nao havia fogo; um homem estava ali encostado a lareira vazia; ao pe
dela havia uma velha sentada em um mocho; a um canto estavam muitas
criancas esfrangalhadas, e la num desvao do quarto, em frente a porta,
jazia no assoalho um objeto envolvido num cobertor. Oliver estremeceu
lancando os olhos para aquele lado e encostou-se involuntariamente ao
amo; apesar da cobertura adivinhou que era um cadaver.
O homem estava palido e descarnado; tinha os olhos injetados, a barba e
os cabelos grisalhos; a velha tinha os olhos penetrantes e os dois dentes que
lhes restavam pendiam sobre o labio inferior. Oliver teve medo de olhar
para ambas as figuras; lembravam-lhe os ratos que vira tao magros na rua.
¡X Ninguem lhe ha de tomar ¡X disse o homem atirando-se para o empresario
que se aproximava do cadaver. ¡X Para tras! Para tras! Ou morre.
¡X Nao sejas tolo, meu rico! ¡X disse o empresario, que estava acostumado
a ver a miseria sob todas as formas. ¡X Deixa-te de tolices!
¡X Repito ¡X disse o homem fechando a mao e batendo no chao com
furor ¡X, nao quero que a enterrem; no cemiterio e impossivel que ela durma.
Os vermes irao atormenta-la sem terem o que comer; estava tao magra!
O empresario nada respondeu a este infeliz em delirio; tirou um barbante
do bolso e ajoelhou-se diante do cadaver.
¡X Ah! ¡X disse o homem debulhado em lagrimas e lancando-se aos
pes da pobre defunta. ¡X Ajoelhemos todos diante dela e oucam-me. Ela
morreu de fome; ate o momento em que caiu com febre eu nao sabia que
estava tao mal; mas entao ja os ossos lhe rompiam a pele; nao tinhamos
fogo nem luz; morreu nas trevas, sim, nas trevas; nem pode ver o rosto
CHARLES DICKENS
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dos filhos, mas nos ouviamos que ela chamava por eles na sua agonia; fui
a rua mendigar para ela e meteram-me na cadeia. Quando voltei estava a
expirar. Juro diante de Deus que ela morreu de fome!
O homem puxou pelos cabelos, soltou um grito horrivel e rolou pelo
chao, com os olhos espantados e a boca espumante.
As criancas assustadas entraram a chorar; mas a velha que ate entao
ficara imovel e como que estranha ao que ali se passava ameacou-os para
que se calassem; depois alargou a gravata do homem, que estava caido no
chao, e caminhou vacilando para o empresario de enterros.
¡X Era minha filha ¡X disse ela, fazendo um sinal com a cabeca para o
lado do cadaver e falando com o ar de uma idiota, mais hedionda de ver
que a propria morte. ¡X Meu Deus! quando penso que eu lhe dei a vida
no tempo em que era mulher e que ainda estou viva e alegre, enquanto
ela esta morta e fria! Ah! meu Deus!... Isto e uma comedia! E uma comedia!
E uma comedia!
Enquanto a pobre velha dizia estas palavras, o empresario ia a sair.
¡X Espere! Espere! ¡X disse ela. ¡X Quando e o enterro? Hoje, amanha
ou depois? Devo acompanha-lo, nao? O frio esta muito agudo? Nos deviamos
comer antes de ir algum pastel e beber vinho; mas nao importa;
mande-nos pao; mande so um pedaco de pao e um pouco de agua. Sim,
meus amigos, mande um pedaco de pao. ¡X A velha agarrava-se a casaca
do Sr. Sowerberry, que ia sair.
¡X Sim, mando, mando ¡X disse ele, ¡X mando alguma coisa, tudo o
que quiser.
Desvencilhou-se da velha e, arrastando Oliver consigo, saiu do quarto.
No dia seguinte, tendo ja a familia recebido um pao de duas libras e
um pedaco de queijo, levados pelo Sr. Bumble em pessoa, Oliver e seu
amo voltaram aquela miseravel casa, acompanhados por quatro homens
do asilo de mendicancia que deviam carregar o caixao. Um velho manto
preto cobria os andrajos da velha e do marido. Puseram o corpo no caixao;
os carregadores puseram-no ao ombro e desceram a rua.
¡X Ande velha, veja se apressa o passo ¡X disse baixinho Sowerberry. ¡X
Ja nao e cedo e o padre nao pode esperar... Carregadores, andem depressa.
Estes apressaram o passo com o leve peso que levavam, enquanto a
velha e o homem os acompanhavam o mais depressa que podiam. O Sr.
Bumble e Sowerberry iam na frente, e Oliver, com as suas perninhas,
corria atras do enterro.
OLIVER TWIST
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Nao era porem tao urgente apressar o passo como dizia o Sr. Sowerberry,
porque ao chegarem ao canto escuro do cemiterio onde nascem urtigas e
onde estao as covas dos pobres, ainda o padre nao havia chegado, e o
sacristao, assentado na sacristia, dizia que provavelmente nao viria senao
dali a uma hora. Puseram o caixao ao pe da cova; o homem e a velha
esperavam pacientemente com os pes na lama, debaixo de uma chuva
fria e penetrante, ao passo que algumas criancas esfrangalhadas, atraidas
pela curiosidade, jogavam a cabra-cega por detras das sepulturas ou saltavam
a pes juntos por cima delas.
Sowerberry e Bumble, amigos do sacristao, aqueciam-se ao fogo com
ele e liam os jornais.
Depois de uma hora de espera, o Sr. Bumble, Sowerberry e o sacristao
foram ate a cova, e ao mesmo tempo apareceu o padre, que andava e
vestia a sobrepeliz ao mesmo tempo. O Sr. Bumble ralhou com duas ou
tres criancas para salvar as aparencias; e o respeitavel clerigo, depois de
ter lido o oficio dos mortos durante quatro minutos, entregou a sobrepeliz
ao sacristao e foi-se embora.
¡X Agora, Bill, encha ¡X disse Sowerberry ao coveiro.
A tarefa era facil; a cova estava tao cheia que o ultimo caixao ficava a
poucos pes do nivel do solo. O coveiro deitou sobre o caixao algumas pas
de terra, deu quatro passos por cima da cova, pos a pa ao ombro e foi-se
embora, acompanhado pelos meninos, que se queixavam de ter sido tao
curto o divertimento.
¡X Vamos ¡X disse Bumble batendo no ombro do pobre homem ¡X,
vai fechar-se o cemiterio.
O homem, que nao tinha feito nenhum movimento depois que chegara
ao pe da cova, estremeceu, ergueu a cabeca, olhou para aquele que lhe
falava, deu alguns passos e caiu sem sentidos. A velha idiota tratava da
manta preta, que o empresario lhe havia tirado outra vez, e nao devia
atencao a nada; tratou-se de por agua fria no homem para faze-lo voltar a
si; puseram-no sao e salvo fora do cemiterio e, depois de fechada a porta,
todos se foram embora.
¡X Entao, Oliver ¡X disse o Sr. Sowerberry ¡X, como achas isto?
¡X Bem, obrigado ¡X disse o pequeno hesitando um pouco ¡X, isto e,
nao acho muito bom...
¡X Has de acostumar-te ¡X disse o Sr. Sowerberry. ¡X Quando a gente
se acostuma, nao sente impressao nenhuma.

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