segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Fausto - Quadros I ao V


QUADRO I
[Prólogo no Céu]
O Empíreo. Ao m eio o Senhor, no trono. À roda a
corte celestial, com as suas jerarquias: anjos,
arcanjos, querubins, serafins, tronos, potestades,
dom inações, virtudes, e coros.

CENA ÚNICA
O SENHOR, a sua corte, logo depois
MEFISTÓFELES*
(Acercam -se do trono os três Arcanjos)
RAFAEL (cantando)
No coro sideral o sol vai prosseguindo,
qual na origem lho hás dado, o curso
harmonioso.
Tonitruante baixo em teu concerto infindo,
só mandando-lho tu, Senhor, terá repouso.
Sua luz dobra a nossa, enchendo-nos de espanto
não podermos sondar-lhe a portentosa essência.
Como o fora a princípio, ó sacra Omnipotência,
teu sol é hoje ainda enigma, assombro, encanto.
GABRIEL (cantando)
E da terráquea esfera a máquina esplendente
segue em seu torvelino, eterno, arrebatado;
por que ora à luz dos céus florido Éden se
ostente,
ora descanse envolta em negro véu bordado.
O mar espuma, troa, investe as brutas fragas,
que o repulsam desfeito, em nunca finda guerra.
Mas na perpétua luta, as rochas como as vagas
seguem juntas, sem termo, o volutear da terra.
MIGUEL (cantando)
Dos solos contra o mar, do oceano aos
continentes,
jogam-se os temporais com ímpeto profundo;
zona de assolasses e criações potentes,
que desfaz e refaz perpetuamente o mundo.
Ígnea precede a morte ao trovejante horror.
Mas nós, os cortesãos da tua imensidade,
gozamos luz e paz por toda a eternidade.
Bendito sejas tu, Senhor! Senhor! Senhor!
OS TRÊS (juntos)
As tuas criações enchem os céus de espanto;
nem o arcanjo lhes sonda a portentosa essência.
Como o fora a princípio, ó sacra Omnipotência,
teu mundo é hoje ainda enigma, assombro,
encanto.
MEFISTÓFELES (cortejando ao Padre Eterno)
Inda enfim cá tornei. Visto quereres
saber por mim o que lá vai no mundo,
pronto; que antigamente (inda me lembra)
gostavas de me ouvir. É só por isso
que me tornas a ver entre esta súcia.
Tem paciência! Eu, retóricas sublimes,
é coisa que não gasto; e mesmo escuso
deste augusto congresso expor-me às vaias.
Co’o meu patos tu próprio te ririas,
a não teres perdido esse costume.
Sei cá palavrear de sois! de mundos!
Toda a minha sabença é perder homens.
O deusito da terra está na mesma:
parvo como ab initio. Melhor fora
(digo eu cá) não lhe teres infundido
o raio dessa luz, que lá se chama
Razão, e que na prática só presta
para o tornar mais bruto que os mais brutos.
Com licença da Tua Majestade,
o que ele me parece, é gafanhoto
pernilongo, com mescla de cigarra,
já voador, já saltão, já num relvado
co’a sua solfa velha a estrugir tudo.
E vá lá, se da erva não saísse
inda era meio mal; mas tem o sestro
de se andar sempre à cata de imundícies.
O SENHOR
Parece-se contigo. O teu regalo
é esse: acusar sempre. Então no mundo
nada há bom?
MEFISTÓFELES
Não senhor. Quanto eu lá vejo
passa até de ruim. Chega a haver dias
que eu próprio tenho lástima dos homens,
coitados! nem me animo a atormentá-los.
O SENHOR
Viste Fausto?
MEFISTÓFELES
O Doutor?
SENHOR
Sim, o meu servo.
MEFISTÓFELES
Servo teu? guapo servo! o rei dos parvos.
Seu comer e beber são do outro mundo.
Pasce-se no fervor da cachimónia,
que o traz há muito aéreo; em suma, é doido,
e ele próprio o suspeita. Ambiciona
cá do céu as estrelas mais formosas,
da terra gozos máximos. Nem perto
nem longe, vê, nem sonha, em que se farte.
O SENHOR
Por enquanto, anda à toa; em breves dias
lhe darei claridade. O fazendeiro
antevê, no abrolhar, a flor e o fruto.
MEFISTÓFELES
Quer Vossa Majestade uma apostinha?
Verá se também este se não perde,
uma vez que me deixe encaminhá-lo.
O SENHOR
Deixo, enquanto for vivo. Onde há cobiças,
é natural o errar.
MEFISTÓFELES
Muito obrigado.
Pois co’os vivos também é que me eu quero;
com defuntos embirro; o meu regalo
é tentar caras rechonchudas, frescas;
sou como o gato: de murganho morto
não faço caso; o meu divertimento
é correr e arpoar aos que me fogem.
O SENHOR
Como queiras. Permito-te que o tentes.
Se lograres caçá-lo desbaptiza-o,
e inferna-o muito embora. Mas, corrido
fiques tu in æ ternum, se confessas
que o bom, dado que errar às vezes possa,
nunca nos sai da estrada, a recta, a nossa.
MEFISTÓFELES
Bom. Não lhe há-de tardar o desengano,
Ganhei tão certo a aposta, como é certo
chamar-me eu Mefistófeles. Se eu vingo
na empresa, a palma do triunfo é minha.
Há-de se regalar de comer terra,
como a tia serpente.
O SENHOR
Alargo a vénia.
Outorgo, enquanto andares nesse empenho,
poderes incarnar, viver co’os homens.
Aos demos como tu, maraus e alegres,
nunca os aborreci tão cá de dentro,
como aos demais que a minha essência negam.
O homem cansa depressa; e quando cansa
nada mais quer fazer. Em razão disso
é que eu houve por bem dar-lhe estes sócios
que o despertam, activam; potestades
criadoras até!
(Voltando-se para os anjos)
Vós outros, filhos
legítimos de Deus! regozijai-vos
nesta mansão das perenais delícias,
aqui onde o poder que vive eterno
e eternamente cria, vos enlaça
com vínculos de amor indissolúveis.
E essas do mundo cambiantes cenas,
ide assentando na vivaz memória!
(Cerra-se o empíreo, dissipando-se os espíritos).
MEFISTÓFELES (só)
E está bem conservado. Não desgosto
de o ver de vez em quando. O meu sistema
de não quebrar com ele inteiramente,
mesmo assim, não é mau. Tamanho vulto
conversar tanto à mão co’um diabrete
não é leve honraria.
E se eu lhe ganho a aposta! oh! que ufania!...

QUADRO II
Aposento gótico, altam ente abobadado.
Uma porta ao fundo, e janela à direita.
Entre um fogão, que fica à esquerda,
arredado da parede, e o prim eiro plano,
uma porta que deita para um corredor. É
noite. Por um a fresta ao alto côa o luar.
Estantes. Alfarrábios volumosos.
Pergam inhos. Máquinas. Retortas. Vidros.
Esqueletos, etc.; tudo em grande confusão.

CENA I
FAUSTO (dessocegado, sentado num a
poltrona de sola e pregaria de cobre, com a
cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos na
mesa de estudo, na qual derram a luz
frouxa um candeeiro aceso.)
Ao cabo de escrutar co’o mais ansioso estudo
filosofia, e foro, e medicina, e tudo
até a teologia... encontro-me qual dantes;
em nada me risquei do rol dos ignorantes.
Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor;
e em dez anos vai já que, intrépido impostor,
aí trago em roda viva um bando de crendeiros,
meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros.
O que só liquidei depois de tanta lida,
foi que a humana inciência é lei nunca infringida.
Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade,
do que toda essa récua inchada de vaidade:
lentes e bachareis, padres e escrevedores.
Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores
de diabos e inferno, atribulados sonhos
e martírio sem fim dos ânimos bisonhos.
Mas, com te suplantar, fatal credulidade,
que bens reais lucrei? gozo eu felicidade?
Ah! nem a de iludir-me e crer-me sábio. Sei
que finjo espalhar luz, e nunca a espalharei
que dos maus faça bons, ou torne os bons
melhores;
antes faço os bons maus, e os maus inda piores.
Lucro, sequer, eu próprio? Ambiciono opulência,
e vivo pobre, quase à beira da indigência.
Cobiço distinguir-me, enobrecer-me, e vou-me
co’a vil plebe confuso, à espera em vão de um
nome.
E chama-se isto vida! Os próprios cães da rua
não quereriam dar em troco desta a sua.
(Depois de longa pausa meditativa)
Só falta recorrer às artes da magia.
No espírito há poder; na voz cabe energia,
que a transforma em cominando. Então,
consociada
a palavra ao querer, talvez lhe seja dada
força para arrancar com soberano império
à natureza avara o íntimo mistério.
Se o chego a conseguir... que júbilo! que dita!
Não precisarei mais, desde essa hora bendita,
após trabalhos mil como esses que frustrei,
dar por certas ao mundo as coisas que não sei.
Ser-me-á fácil dizer o vínculo profundo
que uniu partes sem conto, e fez do todo um
mundo;
ver a força motriz de tanto movimento,
e consignar-lhe a causa. Ah! desde esse momento
em que o cerrado enigma alfim me for notório,
foi-se o torpe chatim de estulto palavrório.
(Depois de pausa, e voltando-se com ovido, para
a fresta por onde entra o luar)
Oh minha lua cheia, oh minha doce amiga!
Possas tu não mais ver em tão cruel fadiga
o homem que tanta vez dos céus hás
contemplado
a desoras velando, em livros engolfado.
Melancólica amante! a claridade tua
achou-me sempre a ler. Se hoje um teu raio, ó
lua,
me levasse a pairar nos cumes apartados,
a borboletear nos antros frequentados
dos espíritos só, a saltitar liberto
da científica névoa, em fundo de um deserto,
à luz crepuscular que tácita derramas
aos selvosos desvãos, por entre as móveis ramas!
Que refrigério d’alma um banho nesse rócio
não dera, amada lua, às febres do teu sócio!
(Silêncio. Cai em desalento. Depois levanta-se, e
percorre com a vista o aposento)
Que masmorra que é isto! E aqui me vou
gastando
neste covil infecto, abominoso, infando,
lôbrega escuridade a que o celeste dia,
prazer da terra toda, um raio a custo envia
pelos vidros de cor em treva mascarado.
Para onde quer que fuja o olhar do emparedado,
bate nesta Babel de livros bolorentos,
pastagem da polilha, informes, sonolentos,
e em rumas de papeis, do tempo denegridos,
caótico tropel de abortos esquecidos,
que trepa, galga, encobre, enluta, afeia, inunda,
a casa desde o solho à abobada profunda;
sem falar no sem-fim de drogas, pós, essências,
máquinas, que sei eu! misérias, importâncias,
que já me infundem tédio. E a isto se apelida
o meu mundo! Isto é mundo, ou esta vida é vida?
(Dolorosamente)
E inda perguntarás, pobre homem, donde vem
a angústia que te rala, e as forças te retém?
Toda a gente a gozar dos bens que o Factor Sumo
lhe faculta na terra; e eu... neste ascoso fumo
entre ossos de animais e esqueletos!
Sus! Sus!
Fausto, longe daqui! Torna-te ao ar, à luz!
(Vai a sair. Retrograda lentam ente)
Mas... agora me ocorre; é bom tentar. Vejamos
que nos diz no seu livro o sábio Nostradamus*.
Não há guia melhor.
(Tira da livraria um calhamaço, e põe-no num a
alta estante de coro, que está colocada a um lado
do proscénio)
Aqui se põe patente
dos planetas o influxo; e logo em continente,
percebido o teor da natureza, tomo
com ela intimidade, e a meu sabor a domo;
trato-a de igual a igual. A espíritos é dada
esta mútua influência. Eis a teoria achada...
(Pausa)
Sim; mas o praticá-la! O humano
entendimento
não pode só por si colher o pensamento
que o nosso abstruso autor depôs nestas figuras.
Génios que me cercais, volantes e às escuras,
se me ouvis, respondei!
(Continua a folhear o livro. Encara na estam pa
do Macrocosmo)
Que imagem peregrina!
que inefável delícia enleva repentina
todo todo o meu ser! enchentes de doçura,
nunca de mim sonhada! A mão que tal figura
aqui delineou, à fé que era divina,
pois só vê-la me acalma, a dor já me não mina.
O coração me exulta, alegre, alvoroçado,
sôfrego, crente, certo, ufano, endeusado
de atingir afinal explicação completa
do enigma que há já tanto os dias me inquieta.
Dar-se-á que eu seja um deus? Não sei. A
claridade
que me cresce em redor, não é da humanidade.
Neste debuxo morto avisto claramente
a vivaz natureza, universal nascente,
estar-se em criações contínuas prorrompendo.
Vejo-o c’os olhos d’alma. Agora, agora intendo
a sentença do sábio:
(Em tom de quem recita coisa decorada)
— «O mundo espiritual
«a ninguém é vedado. O porque o julgas tal
«é por teres o senso obtuso, e o coração
«defunto. Rompe a inércia! Expulsa a indecisão,
«discípulo covarde, e engolfa-te brioso
«no arrebol que entrevês.»
(Contempla a estam pa)
Quadro maravilhoso!
Como tudo se tece e junto se unifica!
Nora imensa e possante, esplendorosa, rica,
música e gemedora, esvaziando e haurindo
das matrizes dos céus, com jogo alterno e infindo,
vida e morte, uma à outra amplíssimo tesoiro,
tudo permisto e a flux nos alcatruzes de oiro,
e tudo de auras mil de bênçãos ventilado,
almo consolo empíreo ao mundo trabalhado!
Que visão teatral! mas ai! visão somente!
Oh Natureza enorme, oh tentação presente,
hei-de entrar-te...
Mas como? Onde é que tens sumidos
os seios da abundância, a que andam
suspendidos
céu e terra? O meu ser, murcho, desanimado,
almeja ir lá sugar leite caudal, jorrado
a quanta sede há ’í! vê que só eu definho
faminto na abundância.
(Voltando impaciente um a porção de folhas do
livro)
Avante! Outro caminho!
(Dá com a figura do Espírito da Terra)
Acho influição melhor nesta figura.
É Génio mais vizinho este da Terra.
Recresce-me vigor; como que entrada
de um vinho novo me referve a mente.
Ouso ao mundo lançar-me: aos bens e aos males;
Arcar com temporais; sentir sem medo
O estrondo de um naufrágio.
(A ser possível, o teatro representará tudo que
no decurso da fala se vai m encionando)
Olha o negrume
que lá vai pela abobada! Sumiu-se
de todo a lua. A lâmpada vasqueja...
apagou-se, fumega. Raios rubros
sinto zunir-me em derredor das fontes.
Da abóbada me sopram calafrios...
Bem te pressinto, Espírito invocado!
Aparece! Todo eu já sou tumulto.
Transforma-se o meu ser: anseio, anelo
por novas sensações. A ti me entrego.
Obedece! Mando eu. Sai! sai! Não tremo;
custe-me embora a vida.
(Pega do livro, e profere em baixa voz a fórmula
da evocação do Espírito. Acende-se uma cham a
avermelhada e trém ula. Aparece nela o Espírito.)

CENA II
Um ESPÍRITO e o dito
ESPÍRITO
Quem me chama?
FAUSTO
Horrendo aspecto!
ESPÍRITO
Pois me evocaste
da minha esfera,
eis-me...
FAUSTO (afastando os olhos, e com o quem
foge)
Não posso!...
ESPÍRITO
(Durante esta fala, Fausto vai fazendo os gestos
e accionados que o Espírito denuncia)
Olha-me! Espera!
Já que almejaste
por ver e ouvir-me,
podes falar!
Olha-me firme
sem titubar!
Aos teus conjuros
obedeci.
Bem! Que me queres?
Pronto! Eis-me aqui.
Pasmas, covarde?
foge-te a cor?
perdeste a fala?
tremes de horror?
O sábio, o forte,
o sem segundo,
o que em seu peito
criava um mundo,
o que nutria
orgulho tal,
que a nós, Espíritos,
se cria igual,
aí jaz por terra
convulso, exausto!
Quem me dá novas
do antigo Fausto?
Tu, que ousaste apostrofar-me
no teu carme,
co’a insolência mais que rara
de afrontar-me cara a cara,
mal que aspiras
o ar que efundo,
já deliras,
já no fundo
mais profundo
do teu ser,
verme calcado,
sentes a vida
quase perdida!
FAUSTO
Eu ceder-te, fogo fátuo!
Nunca tu presumas tal!
Sou Fausto; sou Fausto;
de ti sou igual.
ESPÍRITO
Neste mar,
neste mar tempestuoso
do viver e do actuar,
subo, desço, não repouso,
vou e venho sem cessar
neste mar.
Morredoiras vidas,
mortes renascidas
em fogosas lidas,
sem jamais parar...
eis de que eu fabrico
no imenso tear
as roupas fulgentes
que o rico mais rico,
que o Ente dos Entes
se digna trajar.
FAUSTO
Génio activo e infatigável,
bem que abarques todo o mundo,
eu, espírito incansável,
posso crer-me a ti segundo.
ESPÍRITO
Segundo a um ser, tua invenção,
mas a mim não.
(Desaparece.)

CENA III
FAUSTO (só)
A ti não! a quem então?
Eu que de Deus imagem ser me cri,
nem sequer posso comparar-me a ti?
(Batem à porta)
Que raiva! Não me engano... Há-de ser W agner,
o aluno cá de casa. E lá se perde
tão bela ocasião. Vem este mono
dar-me quebra a visões desta importância!

CENA IV
W AGNER, de roupão e barrete de dorm ir, com um
candeeiro na m ão. FAUSTO vira-se de m au humor.
W AGNER
Queira-me perdoar o interrompê-lo.
O Mestre estava agora declamando;
não ’stava? Dou que lia alguma cena
do seu teatro grego. O que eu gostava
de ser também um dia actor dramático!
É coisa que anda em moda, e rende fama.
Um moralista cénico, até dizem
ser mais útil que um padre.
FAUSTO
Ah, sim, se o padre
é moralista cómico; há bastantes.
W AGNER
O que me faz cabeça, é como pode
quem vive no seu canto, e não vê mundo
salvo algum dia santo, e só o observo
de longe e por um óculo, repito,
como pode ser guia de costumes.
FAUSTO
E certo que o não pode, se em si mesmo
não sentir lá por dentro o fogo sacro.
É só co’a inspiração própria, espontânea,
que se domina a turba, O chocho, o inerte,
como de seu não tem, mas quer pôr mesa,
pilha aqui, sisa ali; mistura, assopra
no seu fogareirinho um lumezito,
e sai-se co’um pitéu de mistifório,
que só porcos ou cães o tragariam.
Se gostas, prol te faça. Mas banquete
que seduza, e convide, e preste aos homens,
só dos miolos teus podes guisá-lo.
W AGNER
E eu a cuidar que nos sermões, o tudo
era a voz, o accionado, o tom solene!
Que lanzudo que eu era!
FAUSTO
Arma aos benesses
sem faltar ao decoro. Farfalhices
e guizalhada a bobos só pertencem.
A paixão verdadeira, o senso recto
escusam de artifício. Assunto sério
não se anda à caça de vistosas frases.
Os discursos de alardo e de oiropeles
com que os vícios zurzis, servem e aprazem
como o vento do outono às folhas secas.
W AGNER
Deus me acuda! A arte é longa, a vida breve.
Já de tanto estudar chego a ter dores
de cabeça e de peito. O achar caminho
certo, seguro, que nos leve às causas,
tem busílis. Primeiro que lá chegue,
pode mil vezes dar o triste à casca.
FAUSTO
Engano, engano! Onde há nuns alfarrábios
nascente milagrosa em que de um sorvo
se fartem para sempre as sedes d’alma?
Refrigério eficaz para tais sedes
só em ti o acharás.
W AGNER
Mas um bom livro!
Não será gosto o recuar nas eras,
ver o que era o saber da primitiva,
e compará-lo ao de hoje? Que progresso!
que esplêndido subir!
FAUSTO
Pois não! já vamos
pelo sétimo céu! Wagner amigo,
o mundo velho é livro arqui-brochado
com sete selos. Isso, que vós outros
apelidais o espírito de um século,
é simplesmente o vosso próprio espírito,
a debuxar fantasmas que abalaram.
Mas que espelho tão pífio a quem o observa!
Faz nojo; faz fugir; bem comparado,
como um barril do lixo, ou como um sótão
de cacaréus sem préstimo nem graça;
ou, por melhor dizer, como comédia
em barraca de feira, alardeando
pomposas vistas, máximas de arromba,
que em falsetes de títeres chimpadas,
são da plebe regalo e maravilha.
WAGNER
Conhecer o que o mundo e os homens sejam
a toda a gente agrada.
FAUSTO
E essa tal gente
que chama conhecer? Quem é que pode
dar à mínima coisa o nome próprio?
Os raros, que algo disso entreluziram,
e que, em vez de o esconder a sete chaves,
foram à doida assoalhar no vulgo
seu pensar e sentir em toda a parte,
acabaram na cruz ou na fogueira.
Amigo, por quem és, vai alta a noite.
Basta por hoje.
W AGNER
Eu cá por mim gostoso
velara a ouvir tal sábio a vida inteira.
Mas enfim cá me vou. Levo inda uns pontos
por aclarar; nas boas horas fiquem
para amanhã, que é Páscoa d’Aleluia.
Eu moirejo a estudar, e sei já muito,
mas inda não sei tudo.
(Sai)

CENA V
FAUSTO (só)
Como estes crendeirões esperam sempre!
Fossam na terra, à cata de um tesoiro,
dão co’uma vil minhoca, e ficam pagos!
Mas aqui, aqui mesmo, onde há tão pouco
me conversava um génio, como pude
ouvir a voz deste homem? Todavia
bem hajas tu, misérrimo vivente,
pois vieste arrancar-me ao desespero
que me ia aniquilar.
Tão monstruosa
era aquela avejão, que me sentia
a par dela pigmeu.
Ter eu suposto
que era imagem de Deus! Crer-me chegado
à intuição da verdade, já despido
na plena luz o invólucro terreno!
e exceder querubins! e a meu talante
por toda a natureza insinuar-me,
fruindo gozos da criadora essência!!...
Pago bem caro o orgulho. Trovejou-me
tremenda voz: «És nada.»
Sim. Nem posso
equiparar-me a ti,
mas reter-te não pude. Vi-me a um tempo
sumo e ínfimo. Espírito inclemente,
co’um mero Vade retro me atiraste
de novo ao flutuar da sorte humana.
A quem já buscarei para instruir-me?
e de que hei-de temer-me?
É bem que eu ceda
ao meu impulso actual, ou que o resista?
Que maior jus terão sobre a existência
Os males do que a força?
És tu, matéria,
parte vil do meu ser, és tu quem sempre
vem contrastar do espírito os arrojos.
Como na vida há bens, fora da vida
já não cremos que os possa haver maiores.
Altos assomos d’alma, que haveriam
de nos dar a ventura, eis que os afoga
um mar d’interessículos mundanos.
Quando audaz fantasia arranca o voo,
brada insofrida: Eternidade, és minha!...»
leva-lhe as asas repentino raio;
esperança, alegria estão desfeitas,
e um cantinho qualquer então lhe basta.
Mas se a vaidade é ida, aí vem cuidados
ralar-nos o interior e destruir-nos
alegria e descanso; não sossegam;
trajam máscaras mil; agora a casa,
logo o paço, a mulher, a prole, os servos,
fogo, punhal, venenos, mar. Trememos
com receios quiméricos; choramos
perdas sonhadas, ilusórias, nulas.
(Pausa)
Deus, eu! Pois eu não vejo claramente
que não sou Deus? Imagem sua! imagem
mais depressa de um verme: um verme vive
a afuroar na terra, a alimentar-se
do pó da terra, enquanto um passageiro
o não pisa e sepulta.
E em a realidade
que é senão pó tudo isto que me cerca,
em tanta prateleira acumulado?
toda essa pedantona bugiaria,
que inda ao mundo dos vermes me afeiçoa?
Ali é que hei-de achar o que me falta?
Terei de ler milheiros de volumes
para saber que em tudo e em toda a parte
os homens tem vivido a atormentar-se?
não havendo senão de longe em longe
num sítio ou noutro alguém que se não queixe?
(Encarando no esqueleto)
Que me estás tu daí zombeteando,
caveira despejada? Entendo a mofa:
dizes que os teus miolos, quando os tinhas,
também como hoje os meus, esfervilhavam;
tudo era afadigarem-se às escuras
em demanda da luz que vivifica;
por gosto erravas, mísero, qual erro,
traz a verdade e em vão.
(Virando-se para as m áquinas)
Se até vós mesmos,
instrumentos, que nunca houvestes alma,
estais co’as vossas cordas e cilindros,
rodas e dentes, a meter-me à bulha!
Eu ter-vos, eu supor-vos chave mestra
de tanto arcano, estar-lhe ansioso à porta,
forcejar... e afinal desenganar-me
de que a chave não diz co’a fechadura!
Ciosa de seus véus a natureza
nem ao mais claro dia se descobre;
e o que ela nos não mostre por si mesma
não lho hão-de arrancar máquinas.
Conservo
para aí todas essas velharias
porque eram de meu pai, que eu fruto delas
inda o não vi; nenhum! Olha a roldana,
como está do candeeiro enfumaçada!
Pudera! um lucubrar de tantos anos!
Melhor eu me tivera descartado
de tão reles herança, encargo e carga
que me faz suar tanto! O que homem herda
só o pode chamar seu quando o utiliza.
Haver que nos não presta é simples ónus.
Só no uso consiste a propriedade.
(Encara num a âmbula de vidro, que está na
prateleira)
Mas, que atracção possante,
dalém, a todo o instante,
me está chamando o olhar?
Âmbula cristalina,
teu brilho me fascina,
me alegra e me ilumina.
Nesta alma, selva escura,
graças a ti fulgura
esplêndido luar.
(Tira a âmbula)
Salve, ó cristal que eu tiro
do ocioso teu retiro
com fé, com devoção!
Conténs a quinta essência
da indústria, da ciência,
a inércia, a sonolência,
a morte fulminante.
Sê-me, ó licor prestante,
refúgio e salvação.
Miro-te, e a dor se acalma.
Empunho-te, e já n’alma
se infiltra placidez.
Outra maré que estua:
Que ímpeto em mim actua!
e sobre a face tua,
vítreo estendal das vagas
me arroja a ignotas plagas
onde outros céus já vês.
Ígnea carroça alígera
aí vem tomar-me. Parto.
Já por caminho insólito
da terra vil me aparto.
Remonto no éter fluido.
Sacudo a humanidade.
Engolfo-me nos vórtices
da suma actividade.
Oh! que existir magnífico!
Sublimo-me até Deus.
Sus, verme; sus, blasfemo,
que o ínfimo ao supremo
alças nos sonhos teus!
De insanos terrores zomba!
Costas vira ao sol da terra!
Portão que a todos aterra,
eis braço audaz que te arromba.
Por um acto só pendente
da minha própria vontade,
provarei que a humanidade
é também omnipotente;
que não passam de delírios,
abortos da mente insana
esses infernos-martírios
com que a morte à vida engana.
Almejo ir com ledo rosto
devassar o passo estreito,
onde o humano preconceito
tão vivos fogos tem posto.
Partamos! É vinda a hora;
rompa-se a treva cerrada;
embora no arrojo, embora,
meu ser se resolva em nada.
(Tira um copo lavrado)
Desce! Vem! Sai do cofre esquecido
(e há bem anos) oh taça, que hás sido
dos avitos festins o prazer.
De conviva a conviva girando
nenhum triste, em te aos lábios chegando,
resistia ao teu ledo poder.
Cada um quando a vez lhe chegava,
sua trova às figuras cantava
do teu fúlgido insigne lavor,
e depois te enxugava de um trago.
Como em voz a sorrir inda vago,
tempos bons do meu flóreo verdor!
Agora estou sozinho;
não há já ’í vizinho
a que haja de passar-te.
Agora já não tenho
que me apurar o engenho
nos teus primores d’arte.
Bom! Venha este licor que súbito inebria;
dele é que te hei-de encher; eu mesmo o preparei;
nenhum lhe chega em força.
(Depois de ter vazado o veneno, da âmbula
para o copo, diz com solenidade:)
Aurora do grão dia!
Com este tetro misto alfim te brindarei!
(Ao chegar a taça aos lábios tangem cam pas;
ouvem -se anjos a cantar)
CORO DE ANJOS* (não vistos pelo espectador,
sons que chegam da Igreja vizinha)
Cristo ressuscita!
Jubilai alturas!
Paz às criaturas,
salvas e seguras
da prisão maldita!
(Continuam a ouvir-se ao longe repicar os
campanários da cidade.)
FAUSTO
Que divina toada e inesperado encanto
dos lábios me repulsa o líquido letal!
Este repique ao longe é já o sinal santo
que anuncia aos fieis o júbilo Pascal?
Será este cantar o do celeste coro
que outrora em dia igual, trocando em festa o
choro,
por cima do sepulcro aberto ao Redentor
hosanas entoara à nova lei do amor?
CORO DE MULHERES (que cantam , sem serem
vistas
também, no próximo templo)
Por nós, seus devotos
aqui foi trazido;
aqui, entre votos
de aromas ungido,
aqui o envolvemos
no linho mais fino.
Como é que o perdemos,
o Mestre Divino?
CORO DOS ANJOS (que não são vistos)
Ressurgiu Cristo amante,
ileso, triunfante
de tanta provação.
Traz por coroa ufana
a humana salvação.
FAUSTO
Vozes celestiais, potente suavidade,
que assim baixais ao pó, de mim que pretendeis?
Não faltam por aí fracos em quem podeis
empregar-vos em cheio. Oiço-vos, é verdade,
mas falece-me a fé... Sem fé, que racional
daria seu assenso ao sobrenatural?
Àquelas regiões, donde oiço a boa nova,
não ouso abalançar-me. E ainda todavia,
só porque na puerícia os mesmos sons ouvia,
como que reverdeço, e o crer se me renova.
Ai, domingo Pascal, o que eras algum dia!
Coavas por mim dentro um ósculo celeste.
O argentino repique era uma profecia...
Ai, dia do Senhor, que júbilos me deste!
Era-me êxtase orar. Impulso irresistível,
inefável saudade, encanto indefinível
me levava a girar nos campos florescentes,
ou no mais ermo bosque, onde em silêncio fundo,
debulhando-me à farta em lágrimas ferventes,
sentia dentro n’alma abrir-se um novo mundo.
Este alegre cantar era, naquela idade,
um bando de folgança à pronta mocidade:
Vinha lá primavera! Inda hoje estas lembranças
de boa fé tamanha e tão pueris folganças
tanta força em mim tem, que junto ao passo
extremo,
depois de resoluto... hesito, se não tremo.
Bem hajais! Prossegui!... oh cânticos celestes,
que abrir-me enfim soubestes
a fonte onde a ternura as lágrimas encerra.
Por vencido me dou: reconquistou-me a terra.
CORO DOS DISCÍPULOS (Invisíveis para o
espectador)
Do avarento moimento arrombado
reascendeu para o trono paterno,
Deus de Deus, luz de luz, sempiterno,
perenal Criador incriado.
Ai de nós! ai, que invejas ao Mestre!
De ora avante sem ele tão sós
cá ficamos no exílio terrestre,
Ai saudades! ai céus! ai de nós!
CORO DOS ANJOS (invisíveis para o
espectador)
Da corrupção da morte
alou-se incorruptível.
Discípulos do forte,
fugi da mesma sorte
da culpa à herança horrível!
Aos que amam de verdade,
cumprem a caridade,
e para a eternidade
chamando os homens vão,
a esses, pia gente,
o que chorais ausente
é, foi, será presente:
pai, mestre, amigo, irmão!

QUADRO III
Fora de portas. Variado cam po. Ao fundo
escureja a porta baixa e arqueada da
cidade. À direita do espectador, um
oiteirinho, com sua pedra tosca em cim a
para assento. Do lado fronteiro, vista de
montes ao longe, e m ais perto um rio com
seus barquinhos a ir e a vir. Tam bém se
descobrem, por aqui por acolá, veredas
rústicas, com gente passeando em várias
direcções. Ao m eio de um terreiro, há um a
tília copada (árvore grande que em
Alem anha se encontra em todas as
povoações, fora de portas, para os
bailaricos do povo).

CENA I
Vem sucessivam ente aparecendo OFICIAIS
DE OFÍCIO, CRIADAS DE SERVIR,
ESTUDANTES, BURGUESES, UM
MENDIGO, UMA VELHA, DUAS
SENHORITAS, UM RANCHO DE
SOLDADOS, e PASSEANTES DE TODA A
CASTA, que vem saindo da cidade, a
espairecer-se.
(Diversos oficiais de ofício)
UM
Por aí!
OUTRO
Não é caminho
para a casa do monteiro?
O PRIMEIRO
Nós gostamos mais do oiteiro
do Moinho.
UM OFICIAL
Para a parte da cascata
é que era o melhor recreio.
SEGUNDO
Isso é caminho que mata,
não passeio.
OUTRO
Tu que votas? que é que fazes?
TERCEIRO
Sei cá? Vou c’os mais.
QUARTO
Rapazes,
é mister que alguém decida.
FAUSTO
Toca a Burgdorf; é subida,
mas vale a pena; verão
belas moças de feição;
cerveja de encher o papo;
e para um chibante guapo,
como todos vocês são,
muito labrosta pimpão
com quem se jogue o sopapo.
QUINTO
Já te não lembram, farsola,
as duas vezes que lá
te derrearam as costas?
Queres terceira! Se gostas
sopeteia, vai; eu cá
não caio na corriola.
UMA CRIADA DE SERVIR
Escusas de aporfiar!
Torno já para a cidade.
OUTRA
Verás que o vamos achar
além no olmedo a esperar
comidinho de saudade.
A PRIMEIRA
E eu com isso que aproveito?
Se eu gostasse do sujeito,
valeria a pena; assim
só para o ver no terreiro
ser teu constante parceiro
no bailarico, isso sim!
Olha que bem para mim!
OUTRA
Vem decerto acompanhado.
A PRIMEIRA
Sim?
A OUTRA
Sim; disse-me que vinha
com ele o tal Carapinha,
que assim tinham ajustado.
UM ESTUDANTE (para outro)
Ih! que pernas que elas tem!
Parecem-me ventoinhas.
Digo que estas cachopinhas
dão calças à gente. Vem!
Vem daí! mexe-te! avia,
senão perdemo-lhe a pista.
Eu cá dos gáudios na lista
só acho três de valia:
pinga forte, esperto fumo,
e servas embonecradas.
UMA DONZELA BURGUESA (afirmando-se nos
estudantes)
Mocetões assim, no rumo
das tristes de umas criadas!
É força de indignidade!
Não podiam conseguir,
em mais nobre sociedade,
objectos a quem servir?
SEGUNDO ESTUDANTE (ao prim eiro)
Forte correr! Pouco atrás
vem duas tão bem vestidas,
tão elegantes! Verás.
São duas páscoas floridas.
... Ai ai ai, que vem com elas
a minha bela das belas.
Oh! que dita! A minha, a minha
formosíssima vizinha,
o meu anjo, o meu amor!
co’o seu passo miudinho
aposto seja o que for
que nos alcança o ranchinho.
PRIMEIRO
Que seca de emprazadoras!
Anda daí, companheiro.
Deixa-as lá. Não ’stão primeiro
criadas, do que senhoras?
Achavas agora graça
em perder o rasto à caça
que vai fugindo? Vem, vem!
Olha que a mão que mais destra
varre ao sábado, também
domingo a amimar é mestra.
UM BURGUÊS
O tal Burgomestre novo
não me cheira. A nomeação
fê-lo soberbo co’o povo:
vara na mão do vilão.
Que bem tem feito à cidade?
O que eu vejo cada dia
é crescerem sem piedade
vexames e tirania.
UM MENDIGO
Oh meus devotos senhores!
Minhas santinhas floridas!
Lançai vistas condoídas
A quem só vos canta dores!!
Co’a vossa bendita esmola
calai-me as lamúrias tristes!
A esmola que repartistes
também voss’alma consola.
Almas devotas e pias,
haja festa para todos!
Sobras dos ricos são bodos,
e trégua a mil agonias.
OUTRO BURGUÊS
Ao domingo, ou num dia de festa,
não conheço delícia como esta
de estar a gente
nas suas terras,
mansa e contente,
forra a perigos,
falando em guerras
co’os seus amigos.
Diz que a Sublime Porta
tudo em barulho traz.
E a nós que nos importa
que haja lá guerra ou paz?
A Turquia é no cabo do mundo.
Onde há pois outro bem mais jucundo
do que isto de estar
um homem pregado
na sua janela,
vazando quod ores,
e a ver pelo rio
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os barcos pintados
de tanto feitio,
que sobem, que descem,
a remos e à vela!
Corre o dia satisfeito;
chega a noite regalada;
vai-se ao leito
prosseguir sonhando a eito
nesta paz abençoada.
TERCEIRO BURGUÊS
Assim digo eu também, senhor vizinho.
Deixá-los lá matar-se os tais Turquescos,
com tanto que haja paz neste cantinho,
vivendo todos como bons Tudescos.
UMA VELHA (a um a Senhorita)
Psiu! Como vai casquilha!
Certo é que a mocidade
é quem no mundo brilha.
Ai, benza-te Deus, filha,
que a tal graciosidade
seria maravilha
que resistisse alguém.
É só esse desdém
esse ar de soberbia
que lhe não fica bem.
Sorria!... Isso que tem?
Sorria!... Vá... sorria!
Assim. Ora inda bem.
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Não sabe? Tenho um dedo,
que tudo me adivinha,
e diz que esta rosinha
nutre, mas em segredo,
um bicho que a definha...
amores, bem me entende,
e eu sei quem eles são;
e dar-lhe o que pretende
está na minha mão.
SENHORITA
Que impertinência! Oh Águeda,
Deixe-me! tenha siso!
E forte causticar!
Para me governar
conselhos não preciso,
Se alguém nos visse agora
aqui sós de palestra
com esta bruxa-mestra...
Suma-se, vá-se embora
(Aparte para as com panheiras)
E contudo o certo é
que em noite de Santo André
me amostrou distintamente
a figura que há-de ter
o futuro pretendente
com quem me hei-de receber.
A OUTRA
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Tal qual, sem tirar nem pôr.
Mandou-me o espelho mirar,
e vi nele um militar,
que há-de ser o meu amor.
E que figura tão linda
que ele era entre os mais soldados!
Desde então, dez mil cuidados
tenho posto em no buscar,
e não o encontrei ainda.
SOLDADOS (cantando)
Castelos roqueiros,
e altivas donzelas
de assalto levar;
¿onde há, bons guerreiros,
coroas mais belas
para um militar?
Se é agra a vitória,
a glória é sem par.
Tocou-se a rebate.
Vencer ou morrer!
Voe-se, ao combate!
Isto é que é viver.
Caí, fortalezas!
Rendei-vos, belezas!
Triunfo e cantar!
Se é agra a vitória,
a glória é sem par.
Ao som dos peloiros
ceifaram-se os loiros.
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Avante, soldados!
Por nós são os fados.
Avante! marchar!
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CENA II
A maior parte dos ditos, que giram ad libitum.
FAUSTO, W AGNER
(W agner é um am igo e discípulo do Doutor Fausto)
FAUSTO (conversando e cam inhando com
W agner para o proscénio)
Descoalharam-se os rios e ribeiros.
Bem haja a primavera! Já nos viça
por todas essas veigas esperança.
O inverno, já caduco, aí vai buscando
refúgio pelas serras. Pobre inverno!
ver como ainda está baldando raivas
por se vingar da fuga! e nós a rirmos
dos tiros mortos, que de lá nos lança,
granizo imbele, que realça os verdes,
mal que um raio de sol os desmortalha.
Por toda a parte desabrolham vidas.
Que folgazão que é o sol! Como se alegra
de entrajar de matiz a natureza!
Como inda por aqui lhe minguam flores,
supre-as com tanta gente pintalgada.
(Continua sempre a sair gente da cidade)
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Vira-te para trás! Desta eminência
olha para a cidade; o formigueiro,
que do escuro da porta vem surdindo!
Não há quem neste dia não cobice
vir ao campo assoalhar-se. Este alvoroço
co’o ressurgir de Cristo, é clara mostra
de outra ressurreição em todos eles.
— Da casa-sepultura, — das canseiras
da oficina ou do trato; — da estreiteza
dessas vielas, que apelidam ruas,
— do soturno dos templos, — é o instinto
quem os promove à luz. Vê com que anseio
se atira a turbamulta ao campo, às quintas!
Que barcadas de gente jubilosa
sobem, descem, transpõem a movediça
veia do rio! Vê-me aquele bote
além, além, o último; de cheio
já mete a borda na água; até as sendas
dos montes lá ao longe estão querendo
quebrar-nos olhos co’as garridas cores
do gentio que as peja. Já cá chega
o estrondear da aldeia. O céu do povo,
se há céu do povo, é isto; o rapazio,
os homens feitos, tudo grita, salta,
ri, tripudia. Aqui me sinto eu homem,
e me é dado que o seja.
WAGNER
Honra e proveito,
Senhor Doutor, é o passear convosco.
Mas eu, se dirigisse este passeio,
não vinha para aqui; nunca achei graça
ao que cheira e tresanda a grosseria.
Este zangarrear cantigas toscas,
estes jogos de bola, esta algazarra,
tudo isso odeio; implica-me co’os nervos.
Andam doidos; parecem-me possessos.
Nem é cantar nem festa; é só balbúrdia.
CAMPONESES debaixo da tília. (Canto e dança,
ao som de um a rabeca)
VOZ
Viva o bailarico!
Já está no terreiro
o nosso ovelheiro
de graças mais rico;
laços no pelico,
flores por cimeiro.
CORO
Dancemos, voemos à volta do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Rabeca magana,
tocar sempre assim!
VOZ
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Tão sôfrego vinha
que esbarrou no seio
de esbelta mocinha,
que assim reconveio:
— «Olha que lorpinha
«que ao balho nos veio!»
CORO
Dancemos, voemos à roda do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Quem viu nunca, ai mana!
ovelheiro assim?
VOZ
E como vai dando
co’os seus calcanhares!
Gire, gire o bando!
Saias pelos ares!
Ai, já vão cansando;
pendam-se aos seus pares!
CORO
Dancemos, voemos à roda do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
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Apertar com gana
braços de marfim
VOZ
— «Não seja atrevido,
«que eu não sou daquelas
«com quem se tem rido»
Baldadas cautelas!
Co’o seu repelido
fugiu dentre as belas.
CORO
Dancemos, voemos à volta do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Rabeca magana,
tocar sempre assim!
UM CAMPÓNIO VELHO (trazendo um a infusa,
e dirigindo-se para Fausto)
Guapa acção, sô Doutor! Num dia destes
vir juntar-se co’a gente cá de fora,
toda ignorante, um sábio dessa polpa!
Aceite-nos portanto esta infusinha.
Melhor não se encontrou. Que a pinga é fresca,
isso é; mas o que importa mais que tudo
é ser de boamente oferecida
para que a beba em gosto, e tantos anos
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lhe acrescente de vida, quantas gotas
contêm no bojo.
FAUSTO
Bem hajais! Aceito
o refresco oportuno; e correspondo
com outro tanto afecto ao de vós todos.
(Reúne-se o povo à roda)
OUTRO CAMPÓNIO VELHO
Quem nos dias ruins não faltou nunca,
bem devia na festa aparecer-nos.
Aqui está, vivo e são, mais de um salvado
pelo pai do senhor, quando as malinas
levavam tudo a eito; e a não ser ele,
inda agora durava a epidemia.
O senhor nesse tempo era um crianço,
e mesmo assim andava em roda viva
co’o paizinho por casa dos enfermos.
Caíam como tordos os defuntos,
e ele sempre de pé. Livrou de boa!
Livrou? Quis de propósito salvá-lo,
para bem nosso, o Salvador do mundo.
TODOS
Viva, viva tempos largos
quem nos põe à morte embargos!
FAUSTO
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Reservai para Deus as vossas graças!
Quem ensina a salvar, quem salva é Ele.
(Vão-se todos para o fundo, e depois a pouco e
pouco vão-se dispersando, ficando só Fausto e
W agner a conversar no proscénio.)
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CENA III
FAUSTO e W AGNER, passeando
W AGNER
Mestre! mestre! Que arroubo hão-de causarlhe
estas aclamações! Feliz quem saca
do talento e saber tão belos frutos.
Correm todos a vê-lo; os pais aos filhos
o apontam; é o oráculo das turbas.
Emudece a rabeca; a dança estaca;
formam alas ao sábio; as carapuças
voam pelo ar; e quase lhe ajoelham,
nem que fora o viático.
FAUSTO
Subamos
um pouco mais a encosta, e poisaremos
além na pedra.
(Sobem e sentam -se na pedra)
Quanta vez, meu W agner,
não vim eu assentar-me aqui, sozinho,
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co’a mente desvairada, consumido
do orar e de jejuns, rico de esp’ranças,
firme na fé! Que choros e suspiros,
que estorcer destas mãos, a ver se obtinha
do poder sobre-humano o fim da peste!
Estas aclamações soam-me a escárnio.
Se bem me leras no íntimo, verias
que nem filho nem pai merecem glórias.
Meu pai era um sujeito obscuro, honrado,
crendeirão, todo entregue a vãs teorias
sobre o teor do enigma Natureza.
Logrou ter seus prosélitos. Fechavam-se
numa cozinha negra, onde tentavam
toda a casta de récipes co’a mira
na fusão dos contrários: Leão ruivo,
(peralvilho montês) ia a consórcio
co’a tenra Flor de lis em banho morno;
passados logo a fogo mais intenso,
levantavam fervura ambos os noivos,
cada qual em sua câmara, e se uniam,
feitos os dois um só; bastava aquilo
para surdir num íris de mil cores
dentro no copo a juvenil princesa.
’Stava pronto o remédio; era tomá-lo,
o enfermo ia puxando, e ninguém punha
nem suspeição de culpa ao mata-sano.
(Morre quem tem seus dias acabados!)
Aqui verás com que infernais mistelas,
socolor de atacar a epidemia,
fomos por todas estas vizinhanças
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muito mais peste do que a própria peste.
A quantos mil não propinei eu mesmo
a bebida funesta! e vendo-os ir-se,
ouvia ao mesmo tempo encomiados
por coisa grande os brutos assassinos!
W AGNER
Que aflição por tão pouco! A probidade
que mais tem que exigir, quando se exerce
honrada e pontualmente o que aprendemos?
Enquanto foi rapaz, novel no ofício,
ia-se com seu pai, que era o seu mestre,
e exemplar que na cópia se revia.
Cresceu, adiantou conhecimentos;
nada, mais natural. Depois, seu filho,
se o tiver, lançará mais longe a barra.
FAUSTO
Que ditosa ilusão, supor que ao homem
seja dado emergir do mar dos erros!
O que é mister saber, ninguém no atinge,
e o que se alcança para nada presta.
(Após alguns m om entos de absorção:)
Fora com tais tristezas, que destoam
deste festivo dia!
Cede, ó alma, aos rebates da alegria!
Que lindeza de tarde! Olha os casais fronteiros
engastados no verde, e como estão festeiros,
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banhados no esplendor do sol que vai fugindo!
Mais um dia vivido, um dia mais que é findo.
Vê-lo lá vai agora, o astro procriador,
alegrar sucessivo, e encher de almo calor
terras, céus, regiões, montes, cidades, povos,
que em círculo sem termo avista sempre novos.
E eu, eu, que o sigo assim co’os votos e co’a
mente,
sem asas, preso ao solo e escravo eternamente!
Que delícia montar num raio vespertino,
e acompanhar no curso ao grão farol divino,
vendo sob os meus pés, na imensa profundeza,
sem eu lhe ouvir nem som, girar a redondeza!
montes a trajar sol; vales escurecidos;
os regatos de prata, em oiro convertidos!
Abismos e alcantis da serra mais bravia
não serviram de empacho à minha etérea via.
Oh! pasmo! aí vem o mar co’as mornas enseadas!
Que é isto, ó sol! quem faz que aos olhos meus te
evadas?
Cansei-me eu de o seguir? Como? Por quê?
Reassumo
do querer força nova; hei-de alcançar-te, ó sumo
voador luminoso, eterno fugitivo,
fartar-me em ti de luz, vulcão perene-activo.
O dia me precede; a noite me acompanha;
por cima os céus; aos pés a undísona campanha.
(Pausa)
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Que aprazível sonhar! mas ah, que o sol no
entanto
cada vez mais se aparta e me desfaz o encanto.
Nas sedes do infinito, ó alma, em vão te abrasas:
prende-te ao solo o corpo; o corpo não tem asas...
não tem, não pode ter. Mas todos, por instinto,
já sentiram por certo o mesmo que em mim sinto:
cobiças de transpor, anseios de subir.
Quando na madrugada em giros se vê ir
subindo pelo azul a esperta cotovia,
que, já sumida à vista, inda o seu canto envia;
quando as águias reaes, sobre os pinhais da serra
pairam lá pela altura; e sobre o mar e a terra
o grou retorna à pátria, ao ninho, aos seu
amores...
quem não inveja a sorte àqueles voadores?
W AGNER
Quimeras, também eu tenho sonhado;
mas dessa casta nunca. Isto de campos
depressa me enfastia; o ser alado
para quem gosta será bom, concedo,
mas eu não tenho inveja ao passaredo.
Tem lá comparação co’os gozos d’alma
do que anda a viajar de livro em livro
e de página em página! Há delícia
para alegrar no inverno as seroadas
como isto, que até dá calor aos membros?
Desenrolando um nobre pergaminho,
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parece-me que a bem-aventurança
toda se embebe em mim.
FAUSTO
Sim. Por enquanto
não aspiras a mais. Conheces uma
das duas sedes d’alma; o céu te livre
de sentires a outra.
Albergo dentro
dois espíritos, dois; forcejam ambos
por se fugir: — um deles, voluptuoso,
abraça a terra; os órgãos o segundam;
o arraigam nela; — o outro, desdenhando
este mundo, este pó, se evade em busca
das regiões que nossos pais habitam.
Ah! se entre o céu e a terra existem entes
dotados de poder, eia! aos meus rogos,
do doirado nevoeiro onde se ocultam
descendam presto!
Dessem-me uma capa
de tal condão, que, em me embarcando nela,
me visse por encanto em longes terras...
não a trocava por nenhumas galas,
nem por manto de rei.
W AGNER
Tate! Não chame
por essa indigna cáfila de trasgos
que (toda a gente o sabe) andam sem termo
a remoinhar-nos pelos ares turvos
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e a chover-nos a súbito desgraças.
— Os do norte com dentes navalhados
e lancetas por língua, a nós se atiram.
— Os do nascente secam-nos, consumem
o pulmão afanado. — Quando saltam
do deserto africano às nossas terras,
abrasam-nos. — Os d’oeste entram suaves,
mas para logo nos afogam tudo:
gados, campos, casais. Pérfidos todos,
alegram-se de ouvir nosso desejo
co’a mira sempre em convertê-lo em males;
folgam de nos servir para burlar-nos;
mensageiros do céu se nos inculcam,
e com doçura angélica nos mentem.
Mas, basta de passeio. Olhe que o dia
já se quer despedir lá do horizonte,
soltas as frias cãs; desce a cacimba.
Nesta hora é que é delícia o lar caseiro.
Não se demore!...
Que pasmar é esse?
que mira no crepúsculo?
(Avista-se um grande cão preto, que vai fazendo
todos os movim entos indicados no diálogo)
FAUSTO
Um cão preto!
Não vês como anda à doida a espolinhar-se?
agora pelo chão da sementeira,
logo sobre o restolho?
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W AGNER
Há muito o vejo.
mas isso que nos monta?
FAUSTO
Observa, observa!
Que julgas tu que seja aquele bruto?
W AGNER
Eu sei? algum cão d’água que perdesse
a peugada do dono, e ande, a seu modo,
naquele desatino a procurá-lo.
FAUSTO
Vê-lo em torno de nós caracolando
de giro em giro, e cada vez mais perto?
Se a vista me não mente, vai deixando
rasto de lume após.
W AGNER
O que eu só vejo
é um canzarrão preto. Isso é no mestre
alguma ilusão óptica.
FAUSTO
Suspeito
que anda a armar-nos em roda imperceptíveis
mágicos laços com que os pés nos tolha.
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W AGNER
E eu entendo que a pobre da alimária
o que faz é saltar, medrosa e incerta,
por só nos ver a nós, em vez do dono,
FAUSTO
O círculo se aperta; ei-lo conosco.
W AGNER
Então já vê se é cão, ou se é fantasma.
Ele grunhe, ele agacha-se de rojo,
abana a cauda... Nada disso é novo;
nunca vi cão que não fizesse o mesmo.
FAUSTO (falando ao cão)
Boca, boca, vem cá!
W AGNER
Tem graça o perro.
Sempre gostei de um bruto desta casta:
— Se o dono pára, assenta-se; — falou-lhe,
salta-lhe doido em cima; — lambe e ladra;
— busca o perdido; — aboca da corrente
a bengala do amigo, e à mão lha torna.
FAUSTO
Tens razão; sim, tudo isso é mero ensino,
que não entendimento.
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W AGNER
A cães tão mestres
não fica mal a um sábio o afeiçoar-se.
Este caiu-lhe em graça, e não me admira:
discípulo melhor não no há no mundo.
(Entram pela porta da cidade.)
99
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QUADRO IV
O anterior cam arim de Fausto.
CENA I
FAUSTO, entrando pela porta do fundo, que deixa
aberta, seguido de um grande cão d’água preto
FAUSTO
Lá deixei planície, prados,
tristemente sepultados
na mudez da noite escura.
A alma pura sobre a impura
já cá dentro predomina
com sutis pressentimentos;
calca a essência alta e divina
as terrenas sensações.
Oh! que insólitos momentos!
Redimi-me das paixões,
que no âmago consomem
o melhor dos meus dois eus.
100
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Só respiro afecto ao homem;
só respiro afecto a Deus.
(Voltando-se para o cão, que anda
desassossegado)
Pára aí, cão! Já basta de corridas.
Que fariscas à porta? Ali tens lume;
vai-te deitar ao pé! Toma, cachorro,
a almofada melhor que tenho em casa.
(Atira-lhe para o pé do fogão a almofada de
cima da cadeira em que se costuma sentar)
Já que lá no caminho da montanha
a correr e pular nos divertiste,
hei-de tratar-te bem, se o mereceres.
(Senta-se à m esa, e espevita o candeeiro)
Aqui sim, no meu cantinho
vendo rir-me o candeeiro,
gozo o bem de estar sozinho,
e esquecer o mundo inteiro.
N’esta mansa claridade
reamanhece o coração!
Dentro, há paz, serenidade;
raia luz, fala a razão;
refloresce a esp’rança amante;
e um saudoso instinto envida
em nosso ânimo anelante
o grão Ser, o Autor da vida.
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(Uiva o cão)
Não me uives, cão! Tapa essa boca, bruto!
Belo acompanhamento às harmonias
que vão dentro de mim! Costume é de homens
zombar do que transcende a sua esfera;
belo e bom muita vez os incomodam,
por isso rosnam; queres tu, cachorro,
fazer-te igual juiz? rosnar como eles?
(Pausa)
Por demais é cansar-me. O júbilo celeste
foi-se, não volta mais. É força de desgraça,
oh minha alma sedenta, achar no ermo agreste
abundante matriz, entrar a encher a taça,
e cair, sem ter morto o ardor com que vieste!
Comigo é sempre assim. Paciência! O que inda val
como compensação, é esta ânsia inata
que nos ala o querer, do ínfimo escuro val,
às altas regiões, onde a alma se dilata,
em comunicação co’o sobrenatural.
Salve, ó revelação! Teu mais brilhante assento
é o Evangelho Santo, o Novo Testamento.
Cobiço perscrutar o texto primitivo,
e co’a maior lealdade, e o escrúpulo mais vivo,
transplantar, se puder, à locução materna,
à minha língua amada, a augusta frase eterna.
(Abre a Bíblia no Evangelho de S. João)
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No princípio era o Verbo. É esta a letra
expressa;
aqui está... No sentido é que a razão tropeça.
Como hei-de progredir? há ’í quem tal me aclare?
O Verbo!! Mas o Verbo é coisa inacessível.
Se apurar a razão, talvez se me depare
para o lugar de Verbo um termo inteligível...
Ponho isto: No princípio era o Senso... Cautela
nessa primeira linha; às vezes se atropela
a verdade e a razão co’a rapidez da pena;
pois o Senso faz tudo, e tudo cria e ordena?...
É melhor No princípio era a Potência... Nada!
Contra isto que pus interna voz me brada.
(Sempre a almejar por luz, e sempre escuridão!)
... Agora é que atinei: No princípio era a acção.
(Voltando-se para o cão)
Entendamo-nos, cão. Se te agrada o meu
quarto,
não me tornes a uivar, que já ’stou mais que
farto.
Não tolero ao meu lado um atrapalhador.
Desempata: — eu ou tu! — Dei-te abrigo e calor;
sou o teu hospedeiro, e da hospitalidade
não quero as leis quebrar. Tens plena liberdade:
se te agrada sair, bem vês a porta aberta.
(Vai-se o cão transformando, do m odo que a
fala indica)
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Mas... que é isto que observo? Assim se
desconcerta
das coisas o teor, o ser da natureza!
Sonho, ou velo?... O meu cão não tinha esta
grandeza,
nem este corpanzil. E o súbito denodo
com que se ergueu de um pulo! Isto de todo em
todo
não é já cão; os cães não tem esta figura.
Então, que génio mau, que horrenda diabrura
hospedei eu em casa? Ui! como vai crescendo!
Que hipopótamo é este! Horrendo vulto,
horrendo!
Vibra chamas do olhar! ameaça co’a dentuça!...
Teu diabólico ser debalde se rebuça;
apanhei-te. Ora espera; e tu verás se o signo
do grande Salomão contra o poder maligno
de vós, relé do inferno, essências vis e imundas,
te não vai atirar de súbito às profundas.
ESPÍRITOS MAUS (no corredor)
Um de nós lá caiu na esparrela.
Companheiros, cautela, cautela,
não entreis em tal casa. Podemos
cá de fora observar; observemos.
E era um lince do inferno, o coitado
que lá jaz na armadilha atrusado
a tremer como um triste raposo.
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Sus, escravos do perro tinhoso,
vogai para cá!
vogai para lá!
Acima e abaixo!
Com isso faredes
que o sócio oprimido
se livre do empacho
das magicas redes.
À obra! Sentido!
Sois-lhes todos devedores
de favores.
De os pagar é vinda a hora.
Ponde-o fora
da prisão que o desalenta.
Leva! Gira! Aferventa! Aferventa!
FAUSTO (abrindo um vade-m ecum de m agia)
Atiro-me ao bruto; primeiro, co’a fórmula
dos quatro chamada:
«Arda a Salamandra! Retorça-se a Ondina!
«Esvaia-se o Silfo! Da terra na mina
vá Gnomo lidar!»
(Quem não soubesse a fundo os elementos,
o seu poder, as suas qualidades,
por nenhum modo punha leis a génios.)
(Torna-se ao livro)
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«Tu, se és Salamandra, salta flamejante!
«Se Ondina, difunde-te em vaga espumante!
«Se és Silfo, em meteoro te exala brilhante!
«Íncubo, Íncubo! acode! Protege a vivenda!
«Sai do chão, sai! Acabe tão longa contenda!»
Nenhum dos quatro é nele; está bem visto.
Nem se ergue, nem se move; olha-me fito,
imóvel que nem órbitas de crânio.
Inda lhe não fiz mossa. Em vão persiste;
a est’outra imprecação não me resiste:
(Voltando ao livro)
És tu do inferno prófugo,
bruto animal?
Então, encara, pícaro,
este sinal
que espanta as negras cáfilas
do antro infernal!
(Continua o bicho a inchar, esconde-se atrás do
fogão; cresce até o tam anho de elefante; vai-se
ainda desenvolvendo cada vez m ais.)
Oh! que balofo inchar! que pelos hirtos!
Podes tu ler, maldito, o ente incriado,
o inefável, o que enche a imensidade,
o que expirou na cruz alanceado,
e redimiu da culpa a humanidade?
Olha aquilo! Emprazado atrás do lume,
cresce, intufa-se; é vulto de elefante.
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Mais? enche tudo; em breves audiências,
vêl-o-eis desfeito em névoa.
(Ao bicho)
Não me esbarres
pela abóbada! Aqui! Aqui! Lançar-te
já já aos pés do Mestre! Toma tento,
que eu não ameaço em vão; bem o tens visto.
Tisno-te ao fogo sacro; não te exponhas
ao corisco trisulco! não provoques
das artes em que excedo a mais terrível!
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CENA II
FAUSTO, e MEFISTÓFELES, que, dissipada a
névoa, sai de trás do fogão, em trajo de estudante
em jornada
MEFISTÓFELES
Que berreiro, Senhor! às suas ordens.
FAUSTO
O recheio do cão cifrou-se nisto!
Um viandante escolar! faz rir, faz.
MEFISTÓFELES
Salve,
luzeiro do saber! Fez-me, confesso,
suar a bom suar.
FAUSTO
Como te chamas?
MEFISTÓFELES
Ridícula pergunta para um sábio
que timbra tanto em desprezar palavras,
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não pode ver sem tédio as aparências,
e só aspira ao âmago das coisas.
FAUSTO
Dos entes como tu saber-se o nome
(Blasfemo, Tentador, Pai da Mentira)
é para logo conhecer-lhe as manhas.
Quem és pois?
MEFISTÓFELES
Quem eu sou? Parte da força,
que, empenhada no mal, o bem promove.
FAUSTO
Não te percebo o enigma.
MEFISTÓFELES
Sou o espírito
que estorva sempre. E com razão, pois tudo
quanto nasceu merece aniquilado;
portanto era melhor não ter nascido.
Meu elemento é o que chamais vós outros
Destruição, Pecado, o Mal, em suma.
FAUSTO
Dizes que és parte, e eu vejo-te completo!
MEFISTÓFELES
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Falo verdade chã. Retro bazófias!
Cada homem (microcosmo de loucuras)
imagina-se um todo; e eu sou, confesso,
parte da parte que era tudo in ovo;
parte da treva, mãe da luz, sim dessa
vaidosa luz, que à sua mãe pleiteia
foros de universal; por mais que o tente
não lhos há-de usurpar; quem lhe deu posses
para mais que abraçar as superfícies?
penetra num só corpo? (e inumeráveis
são eles) só os tinge e aformosenta;
e o mais pequeno em seu correr a embarga.
Deixál-a; tenho fé que cedo acabe;
se perece a matéria, está perdida.
FAUSTO
Já sei o que és, e qual teu nobre empenho.
Como não podes destruir o todo,
pões-te a tomar desforra em ninharias.
MEFISTÓFELES
Consigo pouco, é certo. O oposto ao Nada,
o Que quer que é que existe, o mundo bronco,
por mais que em vulnerá-lo me desvele,
fica-me sempre ileso. Em vão lhe arrojo
ondas, procelas, fogos, terremotos;
ao cabo, terra e mar ficam serenos.
Pois a relé nojosa, a corja humana!
Não há meter-lhe dente. Ando, há que tempos,
a matar neles, sem parar na faina,
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e a espécie a medrar sempre em sangue, em
forças.
É para endoidecer! De ar, água, e terra,
do quente e frio, do húmido e do seco
mil germes brotam... Se não pilho o fogo,
ficava-me sem nada.
FAUSTO
E opões à força
eterno-activa, criadora, amante.
pobre demónio, o punho teu fechado!
Busca outro ofício, aborto vil de caos.
MEFISTÓFELES
Pensarei nisso, e falaremos. Posso
ir-me embora; pois não?
FAUSTO
Pedes-me vénia!
Não te percebo. És livre. Mas, agora
que já sei quem tu és, outorga franca
para me vires ver, quando quiseres.
Aí tens a janela, aqui a porta,
e além a chaminé, que se não fecha.
MEFISTÓFELES
Bom; mas para sair, força é dizê-lo,
acho um certo empecilho: e é ver pintado
no limiar um pé de feiticeira.
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FAUSTO
Tens medo ao pentagrama! Essa é bonita!
E quando entraste, diabão do inferno,
emandingou-te acaso? Um génio desses
deixa-se assim lograr?
MEFISTÓFELES
Repare o sábio!
Aquele pentagrama está mal feito.
O ângulo que aponta para a rua
não fechou bem.
FAUSTO
Ditoso acaso. Temos
portanto que estás preso, e eu sou teu dono.
Foi o tal bico-aberto uma fortuna.
MEFISTÓFELES
O cão vinha a correr; não viu a coisa.
Agora é que reparo no busílis.
Não há sair; não há.
FAUSTO
Pela janela.
MEFISTÓFELES
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É uma lei de espectros e demónios:
sai-se por onde se entra; à entrada livres,
forçados no sair.
FAUSTO
Regulamentos
até no inferno! Bravo! Então convosco
também, senhores meus, pode haver pactos?
MEFISTÓFELES
Mau é nós prometermos; que faltar-vos
nenhum de nós vos falta; é pagamento
rés-vés; nem meio chavo se lhe sisa.
... Essas explicações são contos largos;
ficam para outra vez. Agora, peço
co’a maior ânsia, deixe-me ir embora!
FAUSTO
Mais um instante: lê-me a buena-dicha!
MEFISTÓFELES
Basta de me emprazar. Solte-me e breve
há-de tornar-me a ver então prometo
satisfazer-lhe em cheio as veleidades.
FAUSTO
Não te armei laço algum. Se estás na rede,
foi por teu alvedrio. Asno me julgas
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que havendo às mãos o demo, o lance a monte,
e que fique boca aberta a ver se torna?
MEFISTÓFELES
Mui bem. Se leva em gosto a convivência,
também eu; já não parto. O que lhe ponho
por condição, é que há-de permitir-me
entretê-lo tão só co’as minhas artes.
É nobre passatempo,
FAUSTO
Assino, pondo
por condição também, que essas tais artes
me possam divertir.
MEFISTÓFELES
Dou-lhe a certeza,
caro amigo e senhor. Vai regalar-se
numa só hora mais que em todo um ano
do seu viver monótono. Os cantares
que se hão-de ouvir a espíritos mimosos,
e as imagens formosas, sedutoras,
que esse coro gentil virá mostrando,
será tudo real, que não prestígios
de nenhuma arte oculta enganadora.
Haverá para o olfacto almas delícias.
Depois para o paladar tão finos gostos
como nunca os provou. Depois volúpias
até às fibras íntimas. À obra!
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Tudo é prestes.
Espíritos potentes!
Podeis principiar. Eis-nos presentes.
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CENA III
OS MESMOS. Sai do corredor um bando de
ESPÍRITOS, cantando
ESPÍRITOS
(Ao som dos seguintes cânticos, Fausto, que se
havia sentado na sua cadeira, vai a pouco e pouco
descaindo no sono)
Some-te, abóbada
torva e sombria!
Éter cerúleo,
verte a alegria
neste lugar!
As nuvens sumam-se!
Brilhar, cardumes
dos sois noctívagos!
Suaves lumes,
brilhar! brilhar!
Lindezas célicas,
cercai este homem
com danças lânguidas
que todo o tomem
de almo langor.
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Co’as vossas túnicas,
lindezas puras,
velai no tácito
das espessuras,
ninhos de amor,
onde, abraçando-se
amantes pares,
mil votos férvidos
mandem aos ares
de amar sem fim.
Como prolíficas
da flor vem flores,
do amor delícias,
— destas amores
brotem assim.
Sus, cachos túrgidos!
Presto aos lagares,
espúmeas púrpuras,
que entre dançares
à luz brotais!
Correi quais Ródanos,
fulgi quais lagos,
espelhos trémulos,
dos cumes vagos,
nus de vinhais!
E vós, ó pássaros,
que irrequietos
sempre andais sôfregos
de haurir afectos,
luz e prazer;
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eia, aos céus rútilos
das madrugadas!
Voai às ínsulas
afortunadas,
onde há viver,
torrões fluctívagos
respira em cânticos
de noite e dia,
e onde sem véus
o amor e o júbilo
de mil dançantes,
de horas suavíssimas
fazendo instantes,
relembram céus.
Vão, espairecem-se
pelos oiteiros,
por vales flóridos,
ou nos ribeiros
retoiçam nus.
Vários e unânimes
cada qual mira
a estrela próspera
por quem suspira,
e que o seduz.
MEFISTÓFELES
Adormeceu. Bem haja a criançada aérea,
que assim mo acalentou!
(Apontando para Fausto)
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Inda homem não és, vil filho da matéria,
para reteres preso um génio como eu sou.
(Dirige-se aos Espíritos)
De visões mágicas
povoai-lhe os sonhos,
fáceis, risonhos
filhos do ar!
Adormecestes-mo.
Dure profundo
o seu jucundo
feliz sonhar.
(Saem os Espíritos.)
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CENA IV
MEFISTÓFELES, FAUSTO adormecido, depois
um a ratazana
MEFISTÓFELES
Agora toca a ver se desfazemos
o encalhe da soleira. Quem nos dera
dente de rato aqui!... Pedi-lo e tê-lo,
tudo foi um; já lhe oiço a roedura;
não tarda uma unha negra. Esconjuremo-lo!
«O Senhor dos ratos, murganhos e moscas,
«das rãs, percevejos e mais sevandijas,
«ordena que roas as figuras toscas,
«que ele unta de azeite nestas pedras rijas.
(Sai do buraco uma ratazana, e chega-se à
soleira da porta do fundo)
Saiu do buraco; já chega à soleira.
Brio, ratazana, que a obra é só tua!
Rapa do triângulo a ponta cimeira
do degrau na aresta que dá para a rua!
Ali é que o pé do diabo esbarrou.
Mais dois raspõesinhos, e acabas, meu filho.
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... Zan... zan...Belamente. Mil graças te dou.
Podes-te ir embora; desfez-se o empecilho.
(Volta o rato para o buraco)
Sonha, Fausto, sonha, que eu salto a soleira.
Fica-te, meu sábio, e até à primeira.
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CENA V
FAUSTO, acordando
Olé, já outra! pois não seria
tudo isto, e os génios que eu via e ouvia,
mais do que abortos da fantasia?
e o que eu supunha demónio astuto
não passaria de um mero bruto?
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QUADRO V
O mesmo cam arim de Fausto
CENA I
FAUSTO, depois MEFISTÓFELES, trajado com o
ele m esm o indica no diálogo. Batem.
FAUSTO
Bateram. Entre! Quem virá moer-me?
MEFISTÓFELES (de fora)
Sou eu.
FAUSTO
Entre!
MEFISTÓFELES
Repita-mo três vezes!
FAUSTO
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Pois pela vez terceira, entre!
MEFISTÓFELES (entrando)
Ora graças!
Voltei ou não voltei?
Manos a l’obra!
Toca a deitar cá fora. Eu já no intuito
de lhe furtar a mente a hipocondrias,
aqui venho, entrajado à fidalguinha:
— corpete carmesim bordado de oiro,
— capa de gorgorão, gorra enfeitada
com sua pena de galo,— e o coruscante
chanfalho à cinta. Não percamos tempo.
Vestir como eu, e andar! Livre dos cepos,
verá o que é viver.
FAUSTO
Mudar de pele
não muda interior. Com quaisquer trapos
há-de ir comigo o meu viver terrestre.
Já sou velho de mais para brinquedos,
e para descartar-me de cobiças
inda muito rapaz. Que há nesse mundo
que me possa atrair? Priva-te! Abstém-te!
Eis o eterno refrão com que nos quebram
o bichinho do ouvido a toda a hora.
De manhã, quando acordo, é sempre aflito
e ansioso de chorar, pela certeza
de que o dia que enceto é, como os outros,
incapaz de cumprir-me um só desejo,
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nem um só. Pois se eu sei que a expectativa
do mínimo prazer já chega eivada
de sua improbação, e cada almejo
do meu férvido sangue há-de ir gelar-se
ante as carrancas do viver prosaico!
À noite é-me forçoso entrar num leito
onde já sei me aguarda o labirinto
da turbulenta insónia, e, se olhos cerro,
medonho pesadelo! O Deus que me enche
rege-me a seu talante, influi, domina
té o âmago mais fundo o meu composto.
E tamanha potência nada pode
fora de mim nos mínimos objectos!
Dura carga é viver! quem dera a morte!
MEFISTÓFELES (ironicam ente)
Devagar, devagar! Hóspeda é essa
que dispensa convite e zanga a todos.
FAUSTO
— Feliz o herói que, na embriaguez da glória,
no instante mesmo em que lhe pega os loiros
com sangue hostil nas fontes a vitória,
cai fulminado ao silvo dos peloiros!
— Feliz o amante que depois do enleio
de louca dança, e no auge do delírio,
súbito expira no adorado seio,
e antes da morte vislumbrou o Empíreo!
— E feliz eu, se quando, face a face,
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logrei tratar com génio alto e possante,
nesse extra-vida glorioso instante
morte improvisa os dias meus soprasse!
MEFISTÓFELES (ironicam ente)
Assim será; mas certo sujeitinho,
certa noite que eu sei, não teve a força
de tragar certo líquido.
FAUSTO
Já vejo
que também gostas de espiar.
MEFISTÓFELES
Não digo
que tudo sei, mas sei que farte.
FAUSTO
E ignoras
o porque eu não bebi? Foi porque a ponto
uns conhecidos sons, ecos da infância,
me arrancaram do horrendo labirinto
por onde eu tumultuava, e me puseram
nos meus primeiros, meus saudosos dias!...
e era tudo fantástico!
Mal haja quanto humano artifício enleia as
almas,
e com suaves forças lisonjeiras
na mundanal caverna as traz cativas.
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— Maldita a presunção, que ilude ao homem.
— Malditas as miragens, que nos cegam.
— Maldita a glória vã.— Maldito o sonho
dos póstumos laureis. — Maldito o gozo
do possuir: de ter esposa, filhos,
servos, campos ubérrimos. — Maldito
o Mamon, que envidando-nos seu oiro,
ora nos lança às íngremes façanhas,
ora (e só para uns frívolos recreios)
por cima dos deveres nos afofa
preguiceiros coxins. — Maldita a vinha
co’o seu néctar balsâmico — Maldita
essa das graças graça, am or chamada.
— Maldito o esperar sempre. — A fé maldita.
— Maldita sobre tudo a paciência!
CORO DE ESPÍRITOS (invisíveis)
Ai ai! desta feita deixaste arrasado
c’oa força do murro tão lindo universo;
já tudo em ruínas desaba disperso.
Já é! Ver um homem com Deus comparado!
Andar, companheiros, levar por ’í fora,
para os sumidoiros do vácuo sem fundo,
os cacos e entulhos da fábrica mundo.
Pasmava-se dela; choremo-la agora.
Sus, filho do barro, sus, sus, potentado!
Em troca do mundo, que já destruiste,
extrai de ti outro, melhor, menos triste!
Profere o teu Fiat, e logo é criado!
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Vida nova, clara vida,
corra limpa de mistérios!
Encha os âmbitos etéreos
o cantar do teu Edén!
Ao factor do novo mundo
fama em cânticos florida
alce em coro adorando
glória, glória, glória, Amen!
MEFISTÓFELES
Aí tem no que os meus pajens lhe cantaram
regras do bom viver; de mais acerto
nem conselheiros velhos as dariam.
Aproveite a lição! Torne-se ao mundo!
Fuja do viver só, que estagna a mente,
os sentidos embota, e mole-mole
chucha os sucos vitais. Mau passatempo
é esse de cevar melancolia,
feros abutres d’alma. Em sociedade,
por mui ruim que seja, ao menos sente-se
com homens homem. Não direi que desça
a conviver co’a sórdida gentalha.
Figurão não sou eu; mas se lhe serve
comigo acompanhar na aventureira
jornada deste mundo, pronto e às ordens!
Aqui tem um criado, um companheiro,
um pau mandado, o mais pontual dos servos.
FAUSTO
128
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E eu que te hei-de pagar?
MEFISTÓFELES
Depois veremos;
não é coisa de pressa.
FAUSTO
Ai, nada, nada,
que eu sei de cor as manhas dos diabos:
não dão ponto sem nó. Venha o primeiro
que pelo amor de Deus a alguém servisse.
Vamos às condições: propõe-nas franco.
No tomar um tal servo há seus perigos.
MEFISTÓFELES
Obrigo-me a servi-lo em tudo e à risca
enquanto vivo for, e obedecer-lhe
aos acenos até, sem cansar nunca.
Depois, quando lá em baixo nos toparmos
trocamos os papéis.
FAUSTO
Pouco me afreimo
do teu depois, e mais do teu lá em baixo!
Escavaca este mundo, e engendra um novo,
que se me dá, se é deste que deriva
tudo que me contenta, e o sol que doira
os meus males é este? Em se acabando
mundo e sol para mim, saia o que saia;
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e não há mais dizer. Que me interessa
que lá se odeie ou se ame? haja ou não haja
um abaixo e um acima?
MEFISTÓFELES
Então já pode
no pacto conchavar-se. O que eu lhe afirmo
é que estes dias que passarmos juntos
lhe hão-de por minhas artes dar tais gostos
quais os não teve alguém.
FAUSTO
Pobre diabo,
que hás-de tu dar-me? O espírito de um homem
como eu sou, foi jamais compreensível
aos da tua relé? Tens iguarias
que não matam a fome; oiro que fulge,
mas que igual ao mercúrio, escapa aos dedos;
jogo em que é certa a perda; uma beldade
que até nos braços meus soltando arrulhos,
já está piscando o olho ao meu vizinho;
pompas de glória, um fumo!
O que eu preciso,
se o tens, são frutos a pender de copa
sempre frondosa, e que antes de apanhados
não tenham já por dentro o podre e os vermes.
MEFISTÓFELES
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Bem; tudo isso há-de ter; conte comigo
Desde agora, amiguinho, à rédea solta.
Folgar e mais folgar! Leva de escrúpulos!
Tudo quanto bem sabe, é permitido.
FAUSTO
Se eu me acosto jamais em fofa cama,
contente e em paz, que nesse instante eu morra!
Se uma só vez com falsas louvaminhas
chegares por tal arte a alucinar-me
que eu me agrade a mim próprio; se valeres
a cativar-me com deleites frívolos,
súbito a luz da vida se me apague.
Vá! queres apostar?
MEFISTÓFELES
Se quero! Aposto.
FAUSTO
Aperto mais: Se me chegar momento
a que eu diga: «Demora-te! És formoso»
então aos teus grilhões entrego os pulsos;
então a morte aceito; os sinos dobrem;
já livre estás de mim. Dessa hora avante,
quede o relógio! Caiam-lhe os ponteiros!
Acabou-se-me o tempo.
MEFISTÓFELES
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Olhe o que afirma,
que entre nós outros nada esquece.
FAUSTO
Embora!
Não me obriguei de leve. O que eu padeço
não é escravidão? Ser logo servo
de outro ou de ti, que monta?
MEFISTÓFELES
Às suas ordens,
desde já. Tem a nata dos serventes
para este bródio de barrete fora,
meu querido Doutor!
Mais uma nica.
Há morrer e viver. É bom primeiro
pôr o preto no branco: um tudo-nada;
duas regritas só.
FAUSTO
Que é! Papeladas
até no inferno, rábula! Bem mostras
entender pouco do que seja um homem.
Não vai librado o meu destino inteiro
na palavra que dou? Sendo o universo
um turbilhão perene, achas que possam
quatro letras de borra agrilhoar-me?
(E é geral todavia o preconceito)
Feliz o que tem fé: não se aventura
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a coisas em que é tarde o arrepender-se.
De pôr num pergaminho uns papa-ratos,
e assiná-lo, é que todos estremecem,
por entenderem... que a palavra humana
que na pena é já morta, assume vida
se a uma pele defunta a incorporaram.
Vá! Que exiges, espírito danado?
pergaminho? papel? mármore? bronze?
letra de pena, de buril, de escopro?
Escolhe!
MEFISTÓFELES
Ih! que facúndia, e que fogachos
sem quê nem para quê! Basta um farrapo
de papel fino ou grosso, e uma gotinha
do sangue próprio, com que assigne em baixo.
FAUSTO
Se nessas pataratas fazes luxo,
vá lá!
(Arregaça o braço esquerdo; M efistófeles picalhe
a veia; Fausto m olha no sangue a pena, e
assina com ela o pergaminho que Mefistófeles lhe
apresenta.)
MEFISTÓFELES
Isto do sangue é burundanga
que tem seu quê.
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FAUSTO
Não te violo a avença;
não tenhas medo. As minhas posses todas,
já daqui tas obrigo. Inchei de modo
que só posso caber na tua esfera.
O Factor Sumo pôs-me em bando. Encontro
cancelos a vedar-me a natureza.
O fio do pensar quebrou-se. Há muito
que de todo o saber vivo enjoado.
Deixar-me ora engolfar em vosso abismo,
deleites sensuais, paixões fogosas!
Rompam já ’í portentos e portentos,
qual a qual mais possante a enfeitiçar-me!
Mergulhemos no vórtice dos tempos,
no encapelado mar das aventuras.
Sigam-se embora, como queiram, dores
a deleites, ou júbilos a mágoas.
Tudo, menos a inércia, o mal dos males,
o que mais vexa a dignidade humana.
MEFISTÓFELES
Não ponho restrições; peça por boca!
Se as primícias quiser libar de tudo,
de qualquer coisa (por fugaz que seja)
se quiser na voadura apoderar-se,
não faça cerimónia; e que lhe preste!
FAUSTO
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Entendamo-nos bem. Não ponho eu mira
na posse do que o mundo alcunha gozos.
O que preciso e quero, é atordoar-me.
Quero a embriaguez de incomportáveis dores,
a volúpia do ódio, o arroubamento
das sumas aflições. Estou curado
das sedes do saber; de ora em diante
às dores todas escancaro est’alma.
As sensações da espécie humana em peso,
quero-as eu dentro em mim; seus bens, seus
males
mais atrozes, mais íntimos, se entranhem
aqui onde à vontade a mente minha
os abrace, os tacteie; assim me torno
eu próprio a humanidade; e se ela ao cabo
perdida for, me perderei com ela.
MEFISTÓFELES
Pode crer (há muitos mil janeiros
que eu ando a roer nisto), inda não houve
homem nenhum que desde o berço à cova
lograsse digerir esse fermento.
O complexo do mundo (e pode crê-lo,
pois lho afirma um diabo) é incompreensível
a todos salvo a Deus. Só ele brilha
na luz perpétua; a nós enclausurou-nos
nas trevas sem limite; e a vós, aos homens,
alterna dia e noite.
FAUSTO
135
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E eu quero.
MEFISTÓFELES
Entendo.
O mau é que a arte é longa, e a vida breve.
Dou que não leva a mal uma lembrança.
Tome por sócio um vate, e dê-lhe largas.
Deixe-o campear nos páramos dos sonhos,
até ao ponto de ajuntar às prendas
do meu caro Doutor os dons mais nobres:
valor leonino, rapidez de cervo,
estro d'Itália, madurez do Norte.
Deixe-o ver se, por artes de berliques,
o faz a par magnânimo e velhaco;
se lhe improvisa uns férvidos amores
como os tinha em rapaz, e juntamente
segundo o plano dele arrazoados!
Figurão tal, quem dera vê-lo! Eu curvo
chamava-o logo — «Senhor Dom Mundinho!»
FAUSTO
Mas então eu que sou, se me é defeso
ao ápice aspirar da humanidade,
alvo constante de meus crus anseios?
MEFISTÓFELES
É...? o que é... e acabou-se. Erga o toitiço
emperrucado com milhões de crespos,
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ponha salto em tacões maior de vara,
que não cresce uma aresta.
FAUSTO
Em mal, que é certo.
Quanta ciência em mente de homem cabe
toda em balde juntei; por mais que explore,
força nenhuma se criou cá dentro;
não cresci a grossura de um cabelo,
e em nada do infinito estou mais perto.
MEFISTÓFELES
Senhor meu! Ver as coisas desse modo
é vê-las como o vulgo. A nós compete
pensar com mais juízo, enquanto há vida
para se desfrutar. Eu t’arrenego!
Se tem por coisa sua os pés, os braços,
cabeça, et coe t’ra... ao mais de que se apossa
porque o não tem por seu? Merco seis urcos,
de seis urcos a força ajunto à minha.
Levo-me pelo ar, porque possuo
mais vinte e quatro pés. Fora tontices!
Vamos por esse mundo. O que lhe eu digo
é que um palerma que esperdiça o tempo
em perpétuo hesitar, é como besta
levada pela beiça à roda, à roda,
por mão de um trasgo em árida charneca
insulada entre flóridos pastios.
FAUSTO
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E onde nos vamos?
MEFISTÓFELES
Vamo-nos primeiro
pôr já já daqui fora, que em tal sítio
só mártires. E chama-se isto vida!
uma eterna moedeira dos rapazes
e de si próprio! Deixe-me esse inferno
ao seu vizinho Pança! Há quantos anos
anda aí como o boi no calcadoiro!
e inda assim o mais fino do que sabe
não lhe é dado ensiná-lo aos estudantes.
.................................
Passos no corredor... Algum que chega.
FAUSTO
Não me é possível recebê-lo agora.
MEFISTÓFELES
Coitado! Estar à espera há tanto tempo,
e ao cabo... Não consinto. Eu lho recebo.
Faça favor, empreste-me a batina,
mais o barrete.
(Fausto despe o trajo de Doutor, e Mefistófeles
atavia-se com ele)
Cáspite! Que estampa!
que vera efígies de Doutor chapado!
Deixe por minha conta o mais da festa.
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Dê-me este quarto de hora; e vá no entanto
para a nossa viajata aperceber-se.
(Fausto vai-se pela porta da esquerda para o
corredor.)
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CENA II
MEFISTÓFELES (só)
(Voltado para a porta por onde saiu Fausto)
Descarta-te do siso e da ciência,
máximas forças do homem! Crê somente
nas ficções dos espíritos falazes,
e és meu sem redenção! Deu-te o destino
alma que, desdenhando os bens do mundo,
só aspira vaidosa a bens sem termo.
Com este posso eu bem. Voto arrastá-lo
por quanto há ’í de frioleiras chilras
ao mais bruto viver. Já o estou vendo
escabujar de raiva, inteiriçar-se
aferrado à matéria. À boca, aos olhos,
(quando o vir mais sedento e mais faminto)
hei-de-me regalar de negacear-lhe
fartos manjares, rescendentes vinhos.
Dar-se ao diabo este asneirão foi luxo,
que ele ia ao fundo pelo próprio peso.
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CENA III*
O MESMO, e UM RAPAZOLA, simplório e
acanhadíssimo.
RAPAZOLA
Eu vim há pouco tempo. Desejava
falar, podendo ser, a um grande sábio
que diz que mora aqui.
MEFISTÓFELES
Muito obrigado
por tanta cortesia. Encontra um homem
como todos os mais. Já viu a terra?
RAPAZOLA
O meu empenho todo é que me tome,
Senhor Doutor, à sua conta. Eu venho
co’as melhores tenções; dinheiro, trago
quanto me baste; e sou rapaz sadio,
bem vê. Lá a mãezinha, essa, coitada,
é que lhe custou muito eu vir-me embora.
Mas eu, sim, eu... percebe-me? trazia
na ideia outra tineta: era uma ânsia
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de vir para a cidade, e aprender tudo...
como o outro que diz...
MEFISTÓFELES
Pois, meu menino,
sou por dizer-lhe que acertou co’a a porta.
RAPAZOLA (depois de ter estado a considerar
m udam ente no aspecto da casa; e mudando para
o tom de aborrido)
Falo a verdade. Quem me dera ver
já bem longe daqui! Estas paredes,
estes tectos arcados, aborrecem-me.
Faltam-me o espaço e o ar; nem folha verde,
nem árvore descubro. Em me sentando
no banco duro de uma sala destas,
já não vejo, não oiço, e nada entendo.
MEFISTÓFELES
Tudo vai do costume. Um pequenito
recém-nascido esquiva-se da mama,
depois já busca o bico, e chuchurreia.
Aplico el cuento: as tetas da ciência
vão sabendo melhor dia a dia.
RAPAZOLA
Quem já me dera pendurado nelas!
Mas se eu não sei trepar!
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MEFISTÓFELES (sentando-se doutoralm ente
na cadeira de Fausto, e deixando o rapaz em pé)
Vamos por partes.
Que faculdade elege?
RAPAZOLA
Eu sei! queria
tornar-me sabichão de maço e mona.
Queria compreender a natureza
e abarcar a ciência; o que se avista
na terra, e o que há no céu.
MEFISTÓFELES (que em todo o diálogo vai, de
vez em quando, tabaqueando o caso, de um a
grande caixa, que tirou do bolso, e pôs em cim a da
m esa)
E deu co’a estrada.
O tudo está em conservar o acúmen
da aplicação científica, evitando
pestes scientiæ as distracções.
RAPAZOLA
Percebo.
E essa gana trago eu. Só lembro o gosto
que eu teria, aos domingos de bom tempo,
em saltar por ’í fora.
MEFISTÓFELES
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Foge a vida
m ore fluentis aquæ . Necessário
se faz logo com regra aproveitá-la.
Siga, amiguinho, siga o meu conselho,
que não se há-de dar mal.
(Levanta-se)
E antes de tudo
muito colegium logicum ; por ele
é que um novato aprende a enfiar justinho
os pés da mente em botas à espanhola,
que assim é que é seguir, sereno e cauto,
pé ante pé, a via das ciências,
em vez de andar pulando a um lado e a outro,
qual fogo fátuo em chão de cemitério.
Depois, levam-se meses a ensinar-lhe
o que antes de ensinado é já sabido,
como o comer, como o beber, et coe tera;
Naturæ donam , sapiência infusa,
mas vulgar, mas sem brilho e sem relevo.
Acode um sábio; espostejou-se a coisa:
«Um, dois, três.» Sim senhor, é o que lhe digo.
A alma, que de ideias nos faz teias,
é como o tecelão, quando se esmera
em obra de examina: a cada piso
que ele na apianha dá, mil fios move;
voa, indo e vindo a lisa lançadeira;
no ordume a trama às cegas se entretece;
um golpe só fez tudo.
Ora o filósofo
bate a pata do espírito, e provou-nos
que o que é, devia ser; sendo o primeiro
isto, e aquilo o segundo, é consequência
ser o terceiro assim, e o quarto assado.
É corolário pois, que suprimidos
o primeiro e o segundo, era impossível
que existissem jamais terceiro e quarto
«Bela demonstração!» proclama à uma
a escola toda... mas nem meio ouvinte
nos saiu tecelão.
Pretende um sábio
conhecer e pintar qualquer vivente:
lança-lhe a garra e avia-o. Tem sem dúvida
todas as partes dele. O que lhe falta?
Unicam ente o seu vivaz liame:
Encheiresin naturæ o chama a química.
Zomba de si, sem perceber que zomba.
RAPAZOLA
A modo que não pesco.
MEFISTÓFELES
Em pouco tempo
há-de entender melhor, quando já saiba
reduzir e classar.
RAPAZOLA
Faz-me tudo isto
confusão tal, que sinto, me parece,
galgas de azenha a andar-me no miolo.
MEFISTÓFELES
Logo depois, tratar da metafísica.
Com ela buscará sondar a fundo
o que no humano cérebro não cabe;
mas ou lá caiba ou não, nunca nos falta
para uma pressa um termo altissonante.
Agora, estes seis meses mais chegados,
há-de ir empregando em costumar-se
a ser em tudo tudo arranjinho.
Cada dia cinco horas para a aula,
entrando sempre ao toque da sineta;
a lição bem de cor, trinchada em párrafos.
Disto saca um proveito: é ficar certo
de que o seu mestre não falseia o livro,
nem lhe acrescenta um jota. Não obstante,
desunhe-se a escrever na caderneta
quanto ele proferir como ditado
pelo Espírito Santo.
RAPAZOLA
Entendo à légua;
e é muito bom conselho. Uma pessoa,
levando para casa a coisa escrita,
vai até mais segura e mais contente.
MEFISTÓFELES (tornando a sentar-se)
Mas torno a perguntar; que ciência elege?
RAPAZOLA (depois de ter estado a cuidar entre
si)
Lá da jurisprudência Deus me livre.
MEFISTÓFELES
E acho que tem razão. Não sei que exista
faculdade mais chocha. Herdam-se e testam-se
leis e direitos, tais e quais se coam
de bisavós a avós, de pais a filhos
o sangue eivado, a tísica, as alporcas.
Não há mudar, não há progresso: aviso
chama-se parvulez; o benefício
degenera em trabalho. És descendente
de Fuão? mal por ti: do teu direito
real e inato, é que o Pretor não cura.
RAPAZOLA
O teiró que eu já tinha a tal ciência
tresdobrou desta feita.
(À parte)
Isto é que é mestre.
Que achadão! que fortuna!
(Alto)
E a teologia?
Talvez que...
MEFISTÓFELES
De enganá-lo é que eu não gosto.
Na teologia há mil caminhos falsos
difíceis de evitar; há mil peçonhas
tão ruins, que estremá-las de remédios
é quantas vezes foro de impossíveis.
Também nesta ciência, o mais seguro
é não pensar por si, mas jurar sempre
na palavra do mestre. Em suma, os textos
boias são que, em se a elas aferrando,
nunca um bom nadador se vai ao fundo.
RAPAZOLA
Mas as palavras devem ter sentido.
MEFISTÓFELES
Deverão, deverão; mas não é caso
para tanto ralar, porque onde falta
ideia que se intenda, acode um texto
que vem de molde, e calafeta o rombo.
O palavrório é tudo. Com palavras
se esgrime, contra ou pró, nas magnas teses.
Com palavras arranja-se um sistema.
As palavras tem fé. De uma palavra
não se cerceia um til.
RAPAZOLA
Eu bem conheço
que tanto perguntar é de importuno;
mas gostava de ouvir-lhe um poucochinho
sobre a ciência médica.
MEFISTÓFELES
Esse estudo
leva três anos só; que são três anos
para um campo tão vasto? em se apontando
a boca de um caminho, é como um gamo:
correr e mais correr.
(À parte)
Leva de embófias!
Vou falar chão, como a diabo cumpre.
(Alto)
O essencial da medicina é fácil.
Lê por dentro e por fora o mundo e o homem,
e afinal vê sair-lhe cada coisa
conforme aprouve a Deus. Esbaforis-vos
num corropio à roda da ciência,
e cada qual por fim... pilha o que pilha.
Saber aproveitar as circunstâncias
é que cifra o saber. Pois bem! Figura
não lhe falta, e suponho-lhe ousadia.
Que mais quer? fie em si; verá se os outros
se não fiam também.
Co’o mulherio
é que mais se precisa habilidade.
Os seus ai-ais e ui-uis, perene tema
de eternas variações, curam-se todos
co’a mesmíssima droga. Ao que bem sabe
ser magano à socapa, inda a primeira
há-de vir que resista; é que um sujeito
com Carta de Doutor merece crédito,
e a arte que ele pratica excede a todas.
Anos empata um suplicante avulso
em vencer nicas; um Doutor fez tudo
no primeiro rompante: pede o pulso,
dão-lho logo; tacteia-o brandamente,
regala-se a estudá-lo, e vai no entanto
co’o meigo olhar incendiando a linda;
depois, sem má tenção, sem falsos pejos
apalpa-lhe a cintura, a ver não traga
demasiado aperto no espartilho.
RAPAZOLA (pulando de contente, e esfregando
as m ãos)
Por aí! por aí! Dessa maneira
vê-se o que há e não há.
MEFISTÓFELES
Meu caro amigo,
toda a teoria é névoas; auriverde
só a árvore da vida.
RAPAZOLA
À fé que ouvi-lo
é para mim como um sonhar delícias.
Se me desse licença, ateimaria
em causticá-lo, até roçar no fundo
poço tal de saber.
MEFISTÓFELES
Vá, não se acanhe;
até onde eu chegar...
RAPAZOLA
Eu desejava,
antes de me ir embora, merecer-lhe
a honra de escrever neste meu álbum.
(Entrega o álbum a Mefistófeles, o qual depois
de escrever nele, o restitui ao dono. Este recebe-o
m ui respeitosamente, e lê estas palavras.)
«Eritis sicut Deus, scientes bonum et malum.»
(O rapaz fecha o livro com grande reverência, e
retira-se às cortesias, até sair pela porta do fundo.)

CENA IV
MEFISTÓFELES (só)
Adopta o parecer da minha tia cobra!
Um dia no pavor com que o ânimo soçobra
lá reconhecerás, passando a ser dos meus,
se há ou se houve jamais um ente igual a Deus.
CENA V
O MESMO, e FAUSTO, que volta do corredor, já
entrajado à fidalga, como M efistófeles, mas ainda
de barbas com pridas
FAUSTO
Onde iremos?
MEFISTÓFELES
Escolha! Acho que poderemos
correr da sociedade os dois confins extremos,
começando na plebe, e indo do baixo ao sumo.
Que instrução! que recreio há-de encontrar,
presumo,
nesta desfrutação!
FAUSTO
Com barbas tão compridas,
índole assim montês, maneiras encolhidas,
que vou eu lá tentar? Sou feito deste modo.
Detesto o conviver. Não sei, não me acomodo,
co’o bulício mundano. Onde se encontra gente,
fico como um pigmeu tolhido inteiramente.
MEFISTÓFELES
Isso, amigo, mau é; mas não há mal sem cura.
Anime-se e verá...
Mas que olha? que procura?
FAUSTO
Como havemos nós de ir? Cavalos, trens,
criados...
onde estão?
MEFISTÓFELES
Nunca eu tivesse outros cuidados!
Estende-se este manto, embarca-se a seu bordo,
e despede-se o voo.
FAUSTO
Isso é melhor, concordo.
MEFISTÓFELES
De certo. Saiba mais que para tal viagem
bom será não levar grande matalotagem.
Enquanto fecho um olho, apronto o gás que deve
levantar-nos da terra. Assim, quanto mais leve
for a carga, melhor. Que rapidez! Aceite
já os meus parabéns, à conta do deleite
que tem de lhe excitar na mente comovida
o ver entrado-a nova e prodigiosa vida,
(Durante esta fala, tem Mefistófeles ido
estendendo no chão a capa; e quando se está
colocando sobre ela, cai o pano.)